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Entrevista com um vampiro

Um corredor estreito. A luz escassa. As paredes negras, humedecidas, pingavam. O silêncio quase absoluto interrompido apenas pelo som rítmico dos meus passos. Entrei no gabinete onde me esperavam. Ele lá estava. Sentado. Quase imóvel. Ladeado por dois guardas. A luz trémula do candeeiro projetava sombras no seu rosto. Duro. Ríspido.
“Identificação: Contra-Almirante Carlos Donitz”. Assim começava o longo processo. Sabia-o de cor. A história familiar parecia um delírio grandioso. Neto de Karl Dönitz, Grande-Almirante da Kriegsmarinee o último Chefe de Estado da Alemanha Nazi. A mãe refugiou-se faustosamente no Estoril, onde Carlos nasceu, em 1945, antes de se mudarem para Boston. Não conheceu o pai, desaparecido em combate no Atlântico Norte. Carlos herdara bastante mais do que o nome e um currículo exímio na Marinha. Tinha o temperamento singular, a frieza e a insensibilidade dos Dönitz.
Ao sentir-me aproximar, levantou-se. Os olhos azuis-claros, gélidos, fixaram os meus, perscrutando-me a alma. Reconhecia aquele olhar pelo que me fazia sentir. Um espelho sem reflexo.
Preparava-me para me apresentar e explicar o motivo de mais uma avaliação psiquiátrica forense, quando se antecipou.
“Doutor”, disse numa voz seca, enquanto batia continência. “Sei quem é e o que lhe compete fazer. Não nos faça perder mais tempo. Mesmo neste antro bafiento, o tempo é precioso.”
Ainda processava o que me havia dito quando lançou incisivamente “Em 1945, dois terços dos seus colegas alemães tinham aderido ao partido nazi. Curioso, não lhe parece?”
Não respondi. Não reagi. Nada. Como um predador a estudar a sua presa, queria de mim uma reação. Não lha dei. Terá percebido ali que talvez este duelo pudesse ser mais interessante do que antecipara.
No processo, “Último Cargo Ocupado: Oficial General (OF-7), comandante da missão NATO no Mar Vermelho”. A denúncia da execução, por sua ordem, de piratas capturados ao largo da Somália fora um primeiro sinal de alerta. Depois, alguns dos seus oficiais subalternos começaram a cair. Um por um. “Uma série de mortes, sem precedentes. Suicídios forjados?”, interrogavam-se os inspetores. Vagos indícios, mas um denominador comum: Donitz.
“Mandou matar homens que confiavam em si”, arrisquei disparar.
Inabalável, não pestanejou. Escolhia meticulosamente cada palavra.
“O lobo não explica à ovelha a sua natureza.”
Não confirmou nada. Também não negou. Não precisava. A total inexpressão era eloquente.
“Os inaptos extinguem-se”, continuava. “É a seleção natural. Decerto ouviu falar de Darwin.”
“Não sente culpa?”, devolvi-lhe.
Sorriu. Um sorriso breve, sem calor, que não lhe chegava aos olhos.
“Culpa? Isso é para quem teme consequências. Cumpro o meu dever. Apenas isso. O mundo é simples, doutor: comanda-se ou é-se comandado. The Captain’s wordislaw. Eu sou o que sou. Os outros? Circunstâncias.”
As palavras sucediam-se com a firmeza perturbadora de uma sentença irrevogável. O tempo para a entrevista terminara. Os guardas chegaram. Finalmente. Levantou-se. Como um príncipe na sua corte, parecia impor o ritmo ao seu redor. Imperturbável. Não olhou para trás até chegar à porta. Ali, deteve-se. Voltou-se e lançou-me um último olhar, que me trespassava o peito como um tiro de pistola. Não disse nada. Saíram. O ranger agudo da porta antes de bater. Depois, os passos no corredor, a afastarem-se. Dentro de mim, porém, a aura predatória do Contra-Almirante permanecia, a cravar-se-me na memória como um eco inquietante.
O que se escreve ante a negação de toda a Humanidade? Hesitante, lá peguei na caneta e, numa linha, rabisquei:
“Diagnóstico: Perturbação da Personalidade Antissocial. Prognóstico: Irrecuperável?”

João Mendes Coelho*

  • Médico psiquiatra e adictologista
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