Exemplo de frontalidade da opinião na literatura e na vida. Orientava-se por exigências éticas e princípios democráticos, contra tudo que lhe condicionava a liberdade pessoal e política.
Estou a vê-lo tal como o próprio O’Neill se auto retratou: «moreno, português, cabelo asa de corvo» (…) «sofre de ternura, bebe demais e ri-se…» Estou também a ouvi-lo num bate papo, sempre inesquecível, através das esquinas, entre o Jardim do Príncipe Real e a Rua do Alecrim. Além da conversa fascinante, desafiava – nos para ir comer uns carapaus fritos, com salada fresca, um tinto do lavrador e a sair do barril. Depois era o café. Muito café. Fumava cigarros, uns atrás dos outros.
O centenário do nascimento de Alexandre O’Neill 1924-1986) – que se vai concluir a 19 de Dezembro deste ano – permite recordar o Homem e a obra nas suas várias componentes. Grande poeta, dos maiores da literatura portuguesa da segunda metade do século XX, também se distinguiu pela intervenção cívica.
Manteve, e em circunstâncias bastante difíceis, a frontalidade da opinião. Orientava-se por exigências éticas e princípios democráticos, contra a imposição de compêndios estéticos e cartilhas literárias. Insurgiu-se contra tudo que lhe condicionava a liberdade pessoal.
A política acompanhou-o sempre. Na oposição ao salazarismo, no combate ao marcelismo e, depois do 25 de Abril, na rejeição dos totalitarismos partidários. Era um defensor acérrimo do pluralismo de expressão e crítica.
Entre os poetas e escritores da sua geração, Alexandre O’Neill foi, porventura, o que mais se aproximou do grande público. Basta citar o poema Gaivota, que transpôs as fronteiras nacionais, interpretado pela voz de Amália e a composição musical de Alain Oulman. Para o renome de O’Neill também contribuíram as intervenções frequentes na televisão e noutros órgãos de comunicação, tais como no Diário de Lisboa, n’A Capital e n‘A Luta.
Não poupava a insinuação ostensiva e presunçosa dos intelectuais de serviço que mudam de ideias quando convém, sem qualquer espécie de vergonha: «Todos os dias os encontro – escreveu – «Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los» (…) «Mas também os aturo por escrito. No livro. No jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos. (…). Querem vencer, querem convencidos, convencer. Vençam lá à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear».
Poucos escritores e poetas denunciaram, como O’Neill, os ridículos, as frivolidades, o absurdo, a farsa da sociedade portuguesa. Tal como Gervásio Lobato na célebre Lisboa em Camisa. O inconformismo visceral de O’Neill destaca-se quer no volume Poesia Completa, com introdução de Clara Rocha; quer nos textos dispersos em jornais recolhidos por Maria Antónia de Oliveira, com o título Portugal em forma de Assim.
Mostrou-se implacável perante «o País engravatado todo o ano/ a assoar-se na gravata por engano, /o incrível país da minha tia, / trémulo de bondade e de aletria». Ou quando se debatia com lisboetas que o indignavam: «Tu não mereces esta cidade/não mereces/ esta roda de náusea em que giramos/até à idiotia/ esta pequena morte/ e o seu minucioso e porco ritual/ esta nossa razão absurda de ser. (…) «Tu és da cidade onde vives por um fio/ de puro acaso/ onde morres ou vives não de asfixia/ mas às mãos de uma aventura de um comércio puro/sem a moeda falsa do bem e do mal».
Na criação literária de O’Neill, predomina uma poesia desenvolta onde se acentua a ironia, o sarcasmo e o humor negro; e também noutra poesia de fortes tensões líricas e elegíacas. Faz a exaltação da mulher, celebra a volúpia do Amor: «defendo-me da morte quando dou/meu corpo ao seu desejo violento/e lhe devoro o corpo lentamente». Tambem aprofundou as interrogações que colocam o homem perante a angústia da vida e o desespero da morte.
Faleceu com pouco mais de 60 anos. Já não era novo, mas também não era velho. Morreu destroçado por crises cardíacas e hospitalizações penosas. Ficou, a certa altura, um velhinho magro, pálido e de bengala, igual àqueles velhinhos à espera da morte nos bancos dos jardins. Contudo, mal começava a falar, esquecíamo-nos do espectro físico em que se transformara. Logo nas primeiras palavras, emergia o seu comentário arrasador, a propósito das últimas novidades literárias e políticas.
Viajou muito. Andou de pais em pais. Viu museus e palácios. Comeu e bebeu o que lhe apetecia em bons hotéis e bons restaurantes. Mas Lisboa permanecia dentro dele. Era aqui o seu território: tinha de passar pelas livrarias e alfarrabistas; necessitava de almoçar e jantar nas tascas do Bairro Alto, frequentar antigos restaurantes que já não existem ou se existem têm outros clientela.
Estou a vê-lo tal como o próprio O’Neill se auto retratou: «moreno, português, cabelo asa de corvo» (…) «sofre de ternura, bebe demais e ri-se…» Estou também a ouvi-lo num bate papo, sempre inesquecível, através das esquinas, entre o Jardim do Príncipe Real e a Rua do Alecrim. Além da conversa fascinante, desafiava – nos para ir comer uns carapaus fritos, com salada fresca, um tinto do lavrador e a sair do barril. Depois era o café. Muito café. Fumava cigarros, uns atrás dos outros.
Recebeu, em vida, quase todas as homenagens possíveis para um intelectual politicamente incorreto. À exceção do Prémio Camões ainda não instituído. Entre os poetas e escritores da sua geração, Alexandre O’Neill foi, porventura, o que mais se aproximou do grande público.
Quer na poesia, quer na prosa, quer ainda no ofício da tradução, buscava todos os recursos de cada palavra; desarticulava, sempre que necessário, as amarras da gramática tradicional. Procurou transmitir gestos, tiques e atitudes. Inventava novas palavras, incluía outras extraídas de alfarrábios e ainda mais outras apanhadas na rua ou no café.
Recorreu à ironia e ao sarcasmo para a desmontagem de hábitos e rotinas ancestrais. Daí o paralelo inevitável entre a sua obra a de Nicolau Tolentino e a de Cesário Verde. Nos três podemos encontrar afinidades, embora com escritas diferentes, visões diferentes e os condicionalismos de épocas diferentes. De todos, Alexandre O’Neill continua mais próximo de nós.
Embora exista outra classe social e outra classe política , em numerosos aspetos, mantém hábitos e costumes inveterados, revelam-se refratários à mudança. Daí ser muito difícil ultrapassar constrangimentos ancestrais para atingir as grandes reivindicações do cidadão da Europa.
António Valdemar*
- Jornalista, carteira profissional número UM; sócio efectivo
da Academia das Ciências de Lisboa