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O São Tomé e Príncipe do fotógrafo Luís Godinho

Sem tecto, entre ruínas, à espera — frase do Húmus de Raul Brandão (1917) — pode servir para descrever tudo ou quase tudo o que falta no arquipélago afro-atlântico de São Tomé e Príncipe, mas em contrapartida, como assinala Luís Godinho, autor deste belo foto-livro, Mais Vida: São Tomé e Príncipe (edição do autor, que o vende directamente) em que reuniu imagens tomadas em dez estadas nos últimos mil dias, a partilha e a gratidão pela vida vivida parece alcançar ali um tão elevado índice de humanidade, que se torna impossível ficar-lhe indiferente: «Saudades, sorrisos, lágrimas, abraços e casa, é tudo o que sinto quando penso ou estou em São Tomé e Príncipe», escreve o fotógrafo açoriano-português de 41 anos, a quem uma carreira internacional precocemente alcançada, premiada e reconhecida, não fez exorbitar nem um pouco. O argumentista Alexandre Borges, seu parceiro em projectos de documentarismo para televisão, como o recente Caixa Negra: Arca de memórias açorianas, em exibição no canal insular, escreve no prefácio que «o que a câmara do Luís capta é, primordial e invariavelmente, a dignidade das figuras. […] É a figura humana, na sua dignidade, a sua força, o seu carácter, a sua vida, quantas vezes a sua alegria, que o Luís procura, descobre e desperta em qualquer cenário» (p. 7; itálico meu); em suma, «a delicada glória de estar vivo» e «o fulgor» disso (p. 8).
Algo de particularmente singular há de haver naqueles ilhéus equatorianos — uma população jovem, 62 % da qual com menos de 25 anos —, habitando construções precárias, gastas e insalubres, no meio duma vegetação luxuriante onde, aqui e ali, ainda permanecem sinais do velho apogeu de grandes fazendas de café e cacau (mas um mundo já tão distante que ninguém de hoje o viveu), para que um surto de violência social não sacuda ainda mais os fracos alicerces dum país que preferiu e arriscou ser independente e livre sem verdadeiras condições para o ser. Trocas comerciais sobretudo informais, não tributadas, concessões de exploração de matérias-primas a estrangeiros, como o chocolateiro e cafezeiro italiano Claudio Corallo, e um turismo de luxo, como o desenvolvido pelo sul-africano Mark Shuttleworth na paradisíaca ilha do Príncipe (que Baya Simons e Julian Broad da «HTSI» do Finantial Times visitaram há poucas semanas), resumem a pinceladas largas o quadro sãotomense, em que não falta — nem pode faltar — a presença contínua de organizações humanitárias para cuidados médicos onde eles tão drasticamente são necessários e de fundações ambientalistas para monitorização de ecosistemas marinhos e educação ambiental da população, entre outras. É de resto assim que Luís Godinho visita o arquipélago do Golfo da Guiné em finais de 2019, numa missão da pequena associação de voluntários — DAR: Dreams Are Real — que ele próprio criou para levar educação e material educativo a escolas mais necessitadas, como fizera em Moçambique, onde havia estado em trabalhos de fotojornalismo. Será — provavelmente — «o espírito de um povo simultaneamente oprimido e livre, pobre e alegre, distante mas igual» a que refere o outro Borges, Luís Filipe (posfácio, p. 201), um modo de estar muito distante do nosso, urbano, cosmopolita, tecnológico, talvez quase esvaziado de capacidade de empatia, seguramente dependente de supostos confortos materiais, sem os quais, se diria, tudo está perdido e todos se deprimem.
Não há na verdade das imagens de Luís Godinho, creio, a mais pequena intenção de simular ou esconder a grave situação sãotomense, nem de fazer o elogio de coisas que importaria mudar (mas como?!): lavagem de roupa nos rios (pp. 14-15 e 89) e maternidade precoce (pp. 32-33, 68-69, 140-41), senão mesmo prostituição e «trabalho infantil», que aqui e ali parecem tranparecer. Deixa também evidente que quase toda a roupa e o calçado de crianças e jovens — como as T-shirts estampadas de fantasias que nunca conhecerão, como assinala Alexandre — são doacções ocidentais de roupa usada e descartada, que adultos destas duas ilhas não dispensam sequer. Há também um grupo de meninas que brincam com duas Barbies enormes, brancas e louras como só elas. Estendais de roupa ao sol (pp. 19, 38-39, 54-55, 70-71) dão especial colorido onde predominam construções de madeira e chapa corroídas pelo clima e pelos anos.
Raramente, para não dizer nunca, o fotojornalista se deixou capturar — o que seria fácil e compreensível — pelas belezas naturais de São Tomé e Príncipe, preferindo estar atento ao «tempo a acontecer» no quotidiano de humanos e bichos partilhando o que há, como naquela extraordinária fotografia de mulher amanhando peixe sobre uma rocha à beira-mar sob o olhar atento de cinco cães sentados (pp. 86-87), ou naqueloutra (pp. 74-75) em que cão e porco se resguardam da chuva forte, entrando numa casa habitada.
«Mais Vida!», que dá título ao livro, é maneira sãotomense de brindar, como o nosso «Saúde!». Mas é mais do que ele. «Mais vida é tudo, tudo o que precisamos», foi explicado a Luís Godinho, que ali muito aprendeu: «ainda mais a praticar a gratidão e que a partilha deve ser diária e constante». Alexandre Borges, que o conhecerá bem, diz que «o trabalho do Luís fala de esperança». Oxalá, pois bem precisamos dela.

Vasco Rosa

Publicado originalmente no «Observador», a 18 de Janeiro de 2025

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