Começou por dizer-me que só estava ali porque a mãe a tinha obrigado a ir.
- Toda a gente acha que estou louca. – Remata.
Começo a organizar mentalmente o discurso habitual para desconstruir a conotação estigmatizante da palavra, mas demoro no processo e ela adianta-se. - A vida é o Jenga!
A dever horas de sono à cama, no final de um dia de consulta, não consigo reconhecer a palavra como pertencente a um léxico ajustado àquele contexto. Perante o meu silêncio, explica: - É aquele jogo em que vamos construindo uma torre com peças e cada vez que tiramos uma de um lado para colocar no outro aquilo pode desfazer-se tudo.
A minha curiosidade começa a competir com o cansaço e movo-me na cadeira, aproximando-me, e com a réstia de esforço do dia dirijo-lhe a minha absoluta (ainda que parca) atenção, quero ver até onde nos levará aquele tropo. - Eu vejo as coisas assim: a minha vida é construída de muitas relações que me sustentam, algumas mais antigas, outras mais recentes, algumas muito presentes, outras não tão visíveis, mas que ainda assim estão lá e têm o seu papel. Perdi várias peças nos últimos anos. Não me lembro de ter sentido que ali, onde estava uma pessoa, ficava um espaço vazio. Era mais como se simplesmente as colocasse noutro lugar, numa posição diferente. Sempre senti que essas pessoas continuavam comigo de alguma forma.
- Estou a ver…
- Mas agora, olhe… A torre ruiu. – Diz-me a sorrir, embora tudo em si evoque tristeza. – E o que me intriga é que esta não foi assim a pior perda, nem uma perda definitiva, sabe. Mas foi como se tivesse mexido numa peça estratégica. E agora revivo todas as outras perdas e experimento todos esses vazios.
Começa então a descrever, com algum choro de permeio, os pormenores de várias despedidas e eu perco-me. Perco o resto de tenacidade da atenção e dou por mim a pensar nas minhas próprias perdas. Penso naquela que fez desabar a minha torre, desafiando as leis da mecânica clássica. Assolam-me imagens cuja precisão questiono: a textura da colcha branca na cama em que eu estava sentada, as minhas sapatilhas que não tocavam o chão de madeira puído, os sons distantes da vida dos outros, a afirmar-se contínua, corriqueira e indiferente ao meu espanto e à minha dor.
Aponto mentalmente todos os evitamentos ao longo dos anos. As músicas que deixei de ouvir, os filmes que me recusei a rever, os sítios para os quais só me permitia olhar de soslaio, os temas da medicina que ficaram por estudar. Facilitou-me a vida que o hospital onde nos encontrámos pela última vez tivesse desaparecido pouco depois, engolido por heras (embora prefira imaginá-lo coberto de glicínias).
Regresso à consulta e, confrontada com a minha inépcia, percorro mentalmente os mais de dez anos compreendidos entre o início da faculdade e o fim da especialidade à procura de alguma coisa que me pudesse preparar para isto. Recordo apenas que alguém, algures, sentenciou que não deveríamos ser psiquiatras sem fazer psicoterapia. Mas é tudo e serve-me de pouco, aqui e agora. Formulo a dolorosa conclusão. - Olhe, não a vou conseguir ajudar.
Para evitar o autoflagelo e comiseração, recordo o primeiro desses evitamentos que contrariei ativamente: no quarto ano do curso de medicina obriguei-me, no dia antes do exame de psiquiatria, a estudar o capítulo do luto. Enquanto lia os apontamentos esborratados, senti algo diferente, uma espécie de alívio, em tom de possibilidade. Era esta experiência humana, universal e válida que me iria permitir continuar com algo de teu, que permanece em mim. - Mariana Bettencourt *
- Psiquiatra e Sexóloga clínica