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Folie à deux – O preço da consulta

Uma das vantagens de se ser psiquiatra é que no final de algumas conversas – a que se convencionou chamar consultas – é este que leva algum dinheiro para casa. Mas o ganho nem está aí, a meu ver. Está na orquestra de vozes que oiço e me embala nas noites escuras e frias, como esta, sem que me sinta sozinho ou totalmente perdido.
Tenho uma sorte imensa. Um dos meus melhores amigos era também meu avô, o pai do meu pai. Na minha cabeça, os avôs são à partida todos bestiais. Tolerantes e distanciados da autoridade dos pais – uma espécie de Novo Testamento, embora mais velhos – estão ali de forma ternurenta, sem pressas. Contam histórias. O meu avô passava a vida a contar-me histórias. Sempre da mesma maneira. Cada palavra, cada pausa. De tanto ouvir, podia reproduzi-las de cor. Tenho a impressão de que ainda as oiço. De que as revejo hoje, por aí, noutras pessoas, noutras histórias.
Numa dessas, falava-me de um jovem na Angola colonial que, vindo do trabalho, tirava os sapatos no caminho para casa. Certo dia, nesse percurso, deu uma valente topada numa pedra que lhe partiu um dedo. Depois de meia dúzia de palavrões bem empregues,“ Ainda bem que estava descalço. Meu rico sapato!” – dizia, empregando um misto de humor e alívio, num sotaque angolano que, invariavelmente, me dava vontade de rir.
A história, em si, é desgraçada. Quase uma anedota. Miserável. Uma história para entreter quem, ingenuamente e de barriga sempre cheia, nunca pensaria que alguém, no seu perfeito juízo, andaria descalço na rua para não gastar os sapatos. Ou, talvez, fosse um alerta para a valorização dos bens materiais acima do bem-estar. Ou sobre aquilo a que devemos dar primazia. Ou sobre o humor e a resiliência. Ou será o sapato uma metáfora para a máscara que esconde a desgraça e as fragilidades?
O mais curioso é que, para cada uma dessas muitas histórias, a moral nunca me foi totalmente explicada – de propósito? – e vai-se ajustando com o tempo, ao meu estado de espírito, à fase da vida ou ao mundo que já vi e vivi.
Em janeiro deste ano, o Mário morreu-me. De depressão. Sim, a depressão mata. Embora digam que pode ter sido ele afazer isso a si próprio, não foi. Janeiro é um mês terrível! O meu avô não me falou sobreo lixado que é perder pessoas a quem nos afeiçoámos. Também não me disse grande coisa sobre o absurdo da existência e o que andamos todos para aqui a fazer. Talvez tenha querido que descobrisse isso por minha conta. Ou talvez até me tenha dito e eu é que não cheguei lá. Ainda. Tenho urgência nisso: chegar lá. Tenho mesmo. Mas, até lá, há maravilhas que nos passam despercebidas. Sobretudo, se continuarmos cheios de pressa, a cem ou mais à hora. O meu avô vivia a dez à hora. A dez à hora, na mais veloz das hipóteses. Vivia no gerúndio. Com tempo. Com folga. Com gosto.
“Deixa-te estar a ler, filho. O avô fica só aqui a ver-te.”
Tenho Tenho a impressão de que teria um orgulho imenso em mim. Também eu tenho um orgulho imenso nele. Que sorte ter um avô que também é o nosso melhor amigo. Tenho a impressão de que ainda o oiço a contar-me as suas histórias.
Muitas das histórias que hoje me contam são epílogos das suas, avô. Algumas, até, são consultas. E nalgumas, confesso, fico na dúvida sobre quem devia pagar no final.
O avô nunca me disse que perder os nossos era tão doloroso. O avô também nunca me disse que perder um doente custava tanto. É caríssimo. E os juros altíssimos. E agora mais uma alma na minha orquestra. Não me explicou tanta coisa, avô. Ou explicou, em parábolas e enigmas. Eu é que não percebi. Deu-me as peças avulsas e deixou-me cá a montá-las, como se faz com um móvel do Ikea ou um Lego, sem livro de instruções.
“A maior diferença da Psiquiatria para as outras especialidades é que, nas outras, os doentes morrem… Na Psiquiatria, matam-se.”
Alguém me disse isto um dia, num momento e lugar que já não recordo, com a maliciosa intenção de ferir de morte o meu interesse pela Psiquiatria. Que estupidez! Porque me diria alguém uma coisa dessas? Tão redutora. Tão insensível. Tão infeliz. Tão… verdadeira. Tão verdadeira e custosa, vezes demais.

João Mendes Coelho*

*Médico psiquiatra e adictologista

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