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Memória: a fragilidade da memória na era pós-moderna

Duas notícias na edição da semana passada do Portuguese Times de New Bedford, levaram-me a escrever a crónica de hoje. A primeira foi o gesto altruísta de Manuel Neto, doando 100 mil dólares à Discovery Language Academy. A segunda referia-se a um documentário em defesa das malassadas, ícono cultural dos Açores, que os imigrantes portugueses trouxeram para a América. Esta leitura ocorreu quando eu de novo lia o livro de João Leal que menciono neste texto.

A memória é muitas vezes pensada como uma simples coleção de experiências pessoais que conservamos na mente. Na verdade, porém, é muito mais dinâmica e social do que isto. O trabalho de João Leal (2019) sobre a identidade açoriana evidencia esta ótica, mostrando que a memória não se limita à retenção individual, profundamente influenciada pelas comunidades e culturas a que pertencemos. A forma como nos lembramos do passado é moldada pelas histórias e práticas partilhadas que transmitimos através de gerações, e quadros culturais desempenhando um papel importante nos modos como experienciamos a memória.
A ideia de que a memória é socialmente formatada vem de Maurice Halbwachs (1992), que argumentou não ser este fenómeno restringido apenas a uma experiência individual. Em vez disso, guardam-no as estruturas sociais – como as comunidades, grupos ou mesmo unidades familiares a que pertencemos. Halbwachs acentuou que a memória está sempre influenciada pelos ambientes sociais em que vivemos, o que significa que a versão de algo de que nos recordamos possui uma característica dinâmica. Pode mesmo variar de um grupo ou comunidade para outro. Por isso a memória coletiva não é imutável, dependendo do contexto social em que ao longo do tempo se transforma consoante a evolução das influências ao nosso redor.
A memória prossegue através de eventos celebratórios que a propagam e rejuvenescem. Por exemplo, feriados nacionais ou festas tradicionais mantêm vivas nas comunidades certas memórias, enquanto outras sem reforço num sentido psicológico desaparecem. A omissão do Dia da Restauração no calendário governamental português pretende diminuir ou enfraquecer o sentido patriótico a favor de um futuro identitário fundado na integração europeia como o processo que ocorreu nos Estados Unidos.
Henri Bergson (1910) distinguiu entre dois tipos de memória: uma que é pessoal, ligada a momentos específicos no tempo, e outra relacionada ao conhecimento coletivo e à cultura. Neste contexto, a memória pessoal tende a ser episódica, guardada no universo sináptico de cada indivíduo, sobre as experiências pessoais que temos, os eventos e momentos específicos que compõem as nossas vidas. Por outro lado, a memória semântica é mais ampla, ligada ao conhecimento coletivo. Reside na compreensão cultural partilhada e os valores transmitidos através de gerações, como tradições comunitárias ou histórias comuns que todos numa sociedade compreendem e recordam. Este tipo de memória une as pessoas e ajuda a formar uma identidade coletiva.
A teoria dos arquétipos de Carl Jung (1959) — símbolos ou temas universais que aparecem em diferentes culturas e sociedades — acrescenta uma outra visão da memória. Os arquétipos, como o herói ou a mãe, não são apenas relíquias do passado, mas alegorias vivas que influenciam a forma como experienciamos o presente e imaginamos o futuro. Nesta memória segundo Jung, além do registo de eventos, aqueles símbolos moldam-nos a perceção de nós próprios, influenciando como damos sentido às nossas vidas agora e no futuro.
Juntas, essas teorias mostram que a memória não é estática nem simples, mas um processo fluido em constante evolução em resposta aos estímulos sociais, culturais e psicológicas que nos rodeiam. A memória é algo que criamos juntos, urdido pelas pessoas com quem interagimos e pelas dinâmicas das comunidades em que participamos. As histórias que contamos, as tradições que defendemos e os valores que transmitimos desempenham um papel na formação da memória coletiva. À medida que as sociedades mudam e novas tecnologias surgem, a memória coletiva também se altera, por vezes preservando o passado e outras reinterpretando-o completamente.
O ritmo da mudança está acelerando. A fragilidade da memória revela-se evidente neste fluxo onde e quando se questionam as narrativas tradicionais. As histórias que recordamos, e a forma como as recordamos, não são apenas influenciadas pelo passado, mas também são moldadas pelo presente e pelo futuro.

Bibliografia
Bergson, H. (1910). Matter and Memory. Macmillan.
Connerton, P. (1989). How societies remember. Cambridge University Press.
Halbwachs, M. (1992). On Collective Memory. University of Chicago Press.
Jung, C. G. (1959). Archetypes and the Collective Unconscious. Princeton University Press.
Leal, J. (2019). Azorean identity in Brazil and the United States: Arguments about history, culture, and transnational connections. Tagus Press.

Manuel Leal

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