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Uma voz verdadeiramente livre: A relevância intemporal de Natália Correia

“Ao revisitarmos a sua obra, reconhecemos o seu impacto duradouro na literatura e no pensamento português, bem como o seu papel único na formação da consciência democrática do país.”

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão

Natália Correia in a defesa do poeta.

Trinta e dois anos após a sua morte, no ano de 1993, Natália Correia continua a ser uma das vozes literárias e figuras intelectuais mais marcantes de Portugal. Poeta, romancista, ensaísta e ativista política, Natália Correia foi uma acérrima defensora da liberdade, da criatividade e da preservação da identidade cultural. Os seus escritos, que desafiaram o autoritarismo e a censura, continuam a inspirar as novas gerações, particularmente na sua defesa inabalável dos direitos humanos, do feminismo e da expressão artística. Ao revisitarmos a sua obra, reconhecemos o seu impacto duradouro na literatura e no pensamento português, bem como o seu papel único na formação da consciência democrática do país. Que todos nós aprendamos com a obra da Natália Correia, porque tal como disse numa entrevista publicada em 1983: “Os meus mestres foram todos os homens e mulheres que me deslumbraram em leitura e não só: em exemplos de vida.” A Natália continuará a deslumbrar muitas gerações e na atual conjuntura internacional, a sua obra é ainda mais relevante. Lendo Natália Correia redescobre-se o poder das palavras corajosas na luta pela liberdade, pela justiça e pela verdade.
A poesia de Natália Correia, muitas vezes lírica e provocadora, incorpora uma fusão de elementos surrealistas, românticos e existencialistas. As suas coletâneas, como O Dilúvio e a Pomba (1979), refletem o seu empenho na imaginação poética como meio de resistência. Combinou habilmente o imaginário mitológico e religioso com a crítica social contundente, criando versos que desafiavam o dogmatismo e a hipocrisia. A sua poesia, frequentemente imbuída de erotismo e de ironia subversiva, posicionou-a também como defensora da libertação das mulheres numa sociedade há muito condicionada por valores conservadores. Ao contrário de muitos dos seus contemporâneos, Natália Correia encarava a poesia como uma arma política e uma força espiritual, uma síntese que tornou a sua obra distinta e revolucionária, com a desordem que por vezes o mundo requer para que tenhamos mudanças: “A desordem é necessária, por isso Diónisos existe, porque é na desordem que vamos sorver a ordem. A ordem constante estagna, apodrece. Então tem de vir a desordem como uma espécie de purga, para voltarmos à ordem.”
Para além da poesia, a influência de Correia estendeu-se à prosa e ao teatro, onde continuou a questionar as normas sociais e a repressão política. O seu romance A Ilha de Circe (1957) é uma obra de referência, misturando ficção e indagação filosófica, nomeadamente sobre a condição da mulher num mundo patriarcal. Como ela o disse na entrevista citada: “O homem meteu-se num labirinto. Nós descansámos muitos séculos. A mulher tem um viço, tem reservas em si, tem energias armazenadas que o homem foi perdendo.” Os seus ensaios e discursos solidificaram ainda mais a sua reputação como intelectual de referência, enfrentando destemidamente a ditadura do Estado Novo e defendendo os ideais democráticos. O seu envolvimento na política portuguesa, como deputada após a Revolução de 1974, reforçou o seu estatuto de intelectual empenhada que procurou estabelecer uma ponte entre a literatura e a governação, ou como afirmou: “A reforma política que mais ambicionaria no mundo seria um tipo de sociedade que consiga conciliar o individual e o coletivo.”
O legado de Natália Correia não é meramente literário, é profundamente político e cultural. Foi uma figura-chave na transição de Portugal para a democracia, assegurando que a liberdade artística continuasse a ser central para a evolução da identidade do país. O seu papel como editora permitiu-lhe também defender outros escritores e salvaguardar vozes marginalizadas. Atualmente, à medida que as discussões sobre liberdade de expressão, feminismo e identidade nacional continuam a evoluir, as suas obras mantêm a sua urgência. É essencial que os jovens de hoje leiam Natália Correia. A sua crítica destemida às estruturas de poder e o seu desafio lírico à opressão servem para lembrar que a literatura continua a ser uma força potente para a mudança. Para Natália Correia: “poetizar as mais fundas aspirações humanas arrancando-as do peito dos homens distraídos é o que se deve entender por mensagem do poeta.”
A 32 anos da sua morte, falecendo com 69 anos, com os escritos de Natália Correia jamais podem cair no esquecimento. Com o renovado interesse pelo modernismo português e pelas vozes literárias que moldaram o pensamento contemporâneo, os seus contributos devem ser estudados e celebrados. A Região Autónoma dos Açores tem responsabilidades neste sentido. A obra de Natália Correia precisa, urgentemente de ser reeditada. Toda! Os Açores não podem deixar a Natália Correia no esquecimento. É que ao revisitarem a sua poesia e prosa, os leitores redescobrem uma visionária intransigente cujas palavras ainda ressoam na luta pela justiça, a criatividade e a dignidade humana. Numa região pequena e isolada como os Açores, com cerca de 248 mil pessoas, a cultura é a reposta. Há mais de quatro décadas que Natália Correia escreveu: “A arte e a sociedade são inseparáveis. A sociedade produz a arte e o produto aperfeiçoa a sociedade. Esta finalidade pode não estar imediatamente patente na espécie artística, mas é ela que a determina. Até mesmo as formas de arte declaradamente negativas ou indiferentes obedecem por caminhos ínvios a esta lei.”
Trinta e dois anos depois da sua morte, a voz de Natália Correia permanece tão vital como sempre. A sua escrita continua a ser um farol de resistência artística e intelectual. Num mundo caótico em que as democracias modernas estão em perigo, a obra de Natália Correia é uma fusão destemida de rebeldia poética e desafio político, entrelaçando erotismo, existencialismo e uma luta sem tréguas contra a censura e o autoritarismo. Mais do que uma poetisa, ela foi uma força da natureza que desafiou ditadores, deu poder às mulheres e disse verdades que outros temiam – agora, mais do que nunca, precisamos da voz arrojada e eterna de Natália Correia.

Diniz Borges, nos EUA

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