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As universidades americanas e a defesa dos seus valores fundamentais

A procissão Trumpiana que, nestes últimos dias, ainda estava no adro mas já dava sinais evidentes de caótica confusão, começou a descer a escadaria e a estatelar-se no meio da rua. Não foi à falta de avisos. Um homem que por seis vezes declarou bancarrota nos seus negócios tem vindo a proclamar-se detentor de um plano para salvar o país. Embora detestado por muitos dos seus mais diretos colaboradores, inclusive por tantos que fizeram parte do seu gabinete no primeiro mandato na Casa Branca (e que posteriormente escreveram livros a contar em pormenor o estilo da sua governação), grande parte do eleitorado continuou a ignorar essas narrativas considerando tudo fake news e, por isso, caindo na calculada e estulta esparrela de Trump. Pouca gente tem hoje tempo para ler livros ou sequer livros relativamente longos e com alguma profundidade. Assim sendo, o público não se apercebeu do seu próprio perene morder a isca. Porque uma das táticas de Trump é atirar engodo inflamado em mensagens curtas e incisivas, eminentemente citáveis, que os jornalistas e o público vorazmente devoram, não se dando conta de que ficam agarrados ao anzol. Ele entendeu antes de todos que o importante é ser falado (name recognition); o poder do nome vem por acréscimo. Rodeado da aura que os seus eleitores lhe atribuem, tudo o que ele disser lhes soa a verdade, muito embora seja Trump o primeiro a saber que não é. Para ele, mentir é uma segunda natureza. Não faltam por aí fact-checkers a demonstrá-lo à sociedade.
Nos meios de comunicação também abundam recortes de citações de Trump na campanha eleitoral mostrando bem a diferença entre as suas promessas e o que na realidade tem sido posto em prática. Esta que transcrevo de um Instagram durante a campanha eleitoral é sobremodo eloquente (não é fake news):
Se Kamala ganhar, estareis a três dias de distância de começar uma depressão económica no género da de 1929. Se eu ganhar, estareis a três dias de distância dos melhores empregos, dos maiores ordenados e do mais brilhante futuro económico que o mundo já viu.
Como todo o o mundo está vendo, aliás! Prometeu, por exemplo, que acabaria a guerra Rússia-Ucrânia logo no dia seguinte à sua tomada de posse. E, no entanto, quase metade da América persiste acreditando nas barbaridades com que ele diariamente bombardeia o país. Ah! E o preço dos ovos ia descer automaticamente. De resto, tudo ia ser resolvido automaticamente sob o comando da sua poderosa voz e na sequência de uma sua autoritativa assinatura.
Muito jovem, quando eu ainda nada sabia dos Estados Unidos, ouvi uma história que se me colou na memória. Quando Dwight (Ike) Eisenhower foi eleito presidente, general recém-chegado das fileiras do Exército para chefiar uma sociedade que fazia alarde de ser civil, apesar de ter tido George Washington como primeiro presidente) prometeu recorrer à sua vasta e dura experiência militar para manter o país na linha. Supostamente alguém lhe terá dito: Senhor Presidente, olhe que isto aqui não é como no mundo militar onde as coisas funcionam a toque de um superior. Se assim fosse, o senhor general dava uma ordem e ela era imediatamente transmitida de alto abaixo, logo acatada e cumprida por toda a cadeia hierárquica, sem qualquer objeção. Aqui, o Senhor Presidente toca no botão para transmitir as suas instruções, mas a cadeia de comando não funciona.
Trump pensava que ia tocar no botão e o meio-mundo pró-americano obedeceria. No primeiro mandato, tentou rodear-se de uma equipa a quem acima de tudo pediu fidelidade, o que significava obediência a ele e não à Constituição. Não poucos resistiram e abandonaram-no; outros ficaram, todavia não se submeteram (lembram-se do comportamento do Vice- Presidente Mike Pence no 6 de Janeiro recusando-se a cumprir as ordens do seu Presidente?). Desta segunda vez, Trump assumiu o poder bastante mais precavido e só aceitou uma equipa de acólitos cegamente obedientes. Deu no que estamos a presenciar. Atónitos.
Não tencionava alongar-me tanto nestes considerados prefaciais às interpelações que me têm sido feitas para vir comentar o impacto da política de Trump nas universidades americanas. Porque a Brown University, minha alma mater, tem emergido nos títulos de notícias divulgadas pela imprensa portuguesa sobre as ameaças de cortes de fundos federais na ordem das centenas de milhões de dólares, tenho sido bombardeado com perguntas. O primeiro alvo foi a Columbia University, depois a Harvard e agora a Brown. As razões apresentadas pela Administração Trump são simplesmente absurdas e ridículas porque são falsas, e porque seguem as regras do costume: dar a volta à realidade e noticiar como convém, usando a retórica que a gente do MAGA adora e aplaude. Neste caso, o truque é demonizar as universidades ditas de elite (isso agrada à sua base) acusando-as do que quer que seja. Por agora serve o anti-semitismo. Na verdade, podem ser de elite, mas acolheram e formaram milhares de alunos dos Estados Unidos e de todo o mundo, sem nenhum pedigree, filhos de famílias sem prévia tradição universitária – eu próprio sou exemplo disso. Na verdade, em 53 anos de vida na Brown, nunca testemunhei nenhum tipo de anti-semintismo. Uma vez ou outra surgiram uns graffiti na Hillel House (o edifício onde está sediada a associação internacional judaica) mas nunca ficou apurado se os autores eram sequer alunos da Brown. A universidade tem há décadas um vibrante Departamento de Estudos Judaicos mesmo ao lado do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, e nunca notei absolutamente nada que se parecesse com algum género de distúrbio. O que sempre presenciei foi uma notoriamente vasta presença de professores e alunos judeus, bem como de administradores. Na verdade, nas melhores universidades norte- americanas dos nossos dias, nenhum grupo étnico está hoje tão altamente representado nesses três níveis – corpos docente, discente e administrativo – como o judeu. É assim em todas as Ivy Leagues e na maioria das grandes universidades americanas. Claro que há um grupo ativo anti-Netanyahu e pró-palestiniano, mas isso representa discordância política e não anti-semitismo, até porque muitos dos anti-Netanyahu são precisamente judeus.
De qualquer modo, no ano passado a centena de alunos (apenas esses, entre 10 mil) que acamparam no Brown Green, a praça central da universidade diante do edifício da reitoria, exigindo que a Brown retirasse investimentos nalgumas firmas israelitas, acabaram negociando um acordo.
Na altura escrevi a contar como me reuni com cinco alunos do grupo de liderança (eram meus alunos num University Course, uma cadeira interdisciplinar sobre Valores destinada a finalistas – 4º ano de licenciatura) e como lhes recomendei calma, diálogo e busca de alguma forma de compromisso (compromising em inglês significa “ ambas as partes chegarem a um acordo”).
Do que se trata agora por parte da administração de Trump é de um ataque às melhores universidades acusando-as de elitismo, uma maneira de atacar a investigação científica nas áreas em que o Presidente não está interessado, inclusive as áreas da saúde, os estudos do clima e – crime de lesa majestade – tudo o que tem a ver com equidade em questões de género, etnia e raça.
A Corporação da Universidade (o órgão que supervisiona o governo da instituição, formada por gente eleita mas que não trabalha na universidade), tomou posição declarada na defesa da independência das universidades, e da liberdade de pensamento e de expressão consignada na primeira emenda da Constituição Americana e nos estatutos da Brown. O atual detentor do poder da primeira grande democracia do mundo não fala francês, nada parece saber sobre a Revolução Francesa, nem dá qualquer sinal de querer saber, pois está a reproduzir o papel de Luís XIV como se a repetir em tradução inglesa a famosa declaração daquele monarca absolutista: L’état c’est moi!
O aforismo de George Santayana segundo o qual quem não conhece a história está condenado a repetir-lhe os erros deveria ser-lhe lembrado. Não que tivesse qualquer efeito pois Trump não ouve ninguém e prossegue convicto e atuando como sendo ele próprio L’ÉTAT.
Quousque tandem abutere Catilina patientia nostra? – perguntava na antiga Roma o eloquente Cícero. Até quando Catilina abusará da nossa paciência?
Todavia não é, infelizmente, apenas a nossa paciência que está a ser abusada. Os estragos são profundos e tocam nas bases da Constituição Americana e da história dos Estados Unidos. Não faltam lúcidas vozes conservadoras e republicanas a proclamarem bem alto que há algo de profundamente anti-americano a acontecer nesta América, onde se espalha o medo de defender valores até aqui considerados fulcrais na identidade deste país. Para alguém como eu que admirava o modo engenhoso e de piecemeal social engineering (a expressão é do grande filósofo Karl Popper) que através da experiência e erro ia procurando resolver os conflitos sociais e construindo pouco a pouco uma sociedade mais livre e mais equitativa, é impossível não evocar o nosso Abade Correia da Serra que, tendo vindo para os Estados Unidos com o intuito de observar de perto a criação de um estado moderno decidiu, ao fim de oito anos regressar a Portugal, desiludido porque a América estava a começar repetindo os erros do velho mundo. Nunca terá decerto imaginado que essa repetição iria, em pleno século XXI, atingir as proporções atuais.

Onésimo Teotónio Almeida

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