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O art.º 65º e os nºs de quem não tem abrigo

A 25 de Abril de 1975 realizaram-se as primeiras eleições livres, por sufrágio universal e direto, em Portugal. Foram as mais participadas eleições de uma democracia que tem pouco mais de meio século, contando com uma afluência às urnas de 91%. Daí resultou a aprovação, cerca de um ano depois, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que entrou em vigor a 25 de Abril de 1976.
Tratou-se de um processo extraordinário, do qual não temos memória direta, mas poucas dúvidas temos que dele beneficiamos: foi todo o processo de democratização aberto pelo 25 de Abril que nos permitiu o acesso à escola e à saúde pública, ao voto após os 18 anos, a salvaguarda dos nossos direitos laborais, à proteção social nos períodos de maior vulnerabilidade. Foi na afirmação do princípio da igualdade que se inscreveram normas que, pelo menos em teoria, nos protegem de discriminações. Cinquenta anos depois, não temos dúvidas que, não obstante vivermos num país semiperiférico (e numa região ultraperiférica), com todas as debilidades económicas associadas, tivemos sorte em nascer num tempo e espaço de relativa vitalidade democrática. Em tempo de eleições, mas de múltiplas ameaças populistas, é bom relembrá-lo.
Há, num entanto, um campo onde o alcance do processo de democratização aberto pela revolução de abril teve alcance limitado: o da habitação.
Desde a sua versão original que a CRP reconhece, no seu artigo 65º, o direito universal “a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Essa primeira versão da CRP reconhecia também a incumbência do Estado em executar uma política de habitação coerente com esse princípio.
Não podemos aqui detalhar a forma que tomou e como evoluiu esse artigo, destacaríamos apenas que foi renominado, em 1997, para reconhecer que o direito à habitação está intimamente ligado às regras de ocupação, uso e transformação do controlo dos solos urbanos (ligando “Habitação e Urbanismo”); a garantia do direito de participação na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico; e o papel das Regiões Autónomas e autarquias locais nesse planeamento urbanístico tendente à efetivação desses direitos. O facto da lei de bases da habitação ter sido aprovada apenas em 2019 é um bom indicador nos atrasos verificados neste domínio.

Em tempo de política de “rolo compressor” é bom evocar estes pequenos-grandes detalhes. E há uma preocupação específica que nos motivou a escrever este texto: o debate sobre o números e a situação que quem não tem abrigo. Deixaremos para outra oportunidade a forma ligeira e sensacionalista como a relação entre a condição de sem abrigo e o consumo de drogas tem sido mediatizada, centrar-nos-emos apenas nos números e na definição de políticas.
Em Novembro do ano passado, foi divulgado pela Secretária Regional da Saúde e Segurança Social dos Açores, Mónica Seidi, que existiriam 386 pessoas na região na condição de sem abrigo, sobretudo nas ilhas de São Miguel e na ilha Terceira e, em particular, no concelho de Ponta Delgada. Anunciava também a intenção do governo de lançar em 2025 o primeiro Plano Regional para a Pessoa Sem-Abrigo.
Confessamos que estranhamos esses números visto que resultariam numa redução face aos números apontados no estudo pioneiro divulgado em 2022 pela Novo Dia – Associação para a inclusão social, e no qual nós participamos. Segundo este estudo, amplamente divulgado e acessível online, existiriam 493 pessoas em situação de sem abrigo. Esses dados referem-se aos Açores e a Dezembro de 2020. Isso significa que, se tomarmos por referência os dados entretanto divulgados pelo Governo Regional, referentes a 2024, teríamos assistido a redução assinalável do fenómeno. Ora, considerando a crise de habitação hoje vivida, nos Açores e em Portugal, isso não nos parece ser plausível. Parece-nos pois importante a urgente divulgação do estudo citado pelo Governo.
Além disso, estamos a falar da mais grave forma de exclusão social e habitacional, que denota o fracasso em garantir aplicação dos princípios salvaguardados pelo artigo 65º. Há uma vasta evidência científica e conhecimento gerado com base na experiência no terreno da FEANTSA apontando que qualquer estratégia de prevenção efetiva implica o acesso a habitação segura e acessível.1 Enquadrar o debate sobretudo no campo da saúde (mental), em ações de assistência social, ou em medidas tendentes à criminalização de comportamentos é um erro que não nos podemos dar ao luxo de (continuar) a cometer, pelo menos se pretendemos inverter a situação de emergência habitacional que hoje se vive.

1 A FEANTSA é a federação europeia de organizações que trabalham com pessoas em situação de sem abrigo.

Lídia Canha Fernandes *

  • Socióloga e Psicóloga
  • Paulo Vitorino Fontes **
  • ** Sociólogo e Cientista Político
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