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Folie à deux: Pascoela

Manhã de segunda-feira na casa dos avós, depois do Domingo de Páscoa. O cheiro apetitoso a café e torradas quentes. A televisão murmurava ao fundo quando lançou a triste notícia: “Morreu o Papa Francisco.”
O Miguel, de quase seis anos, atraído pelas letras enormes e o tom de alerta, leu titubeante cada sílaba.
— Morreu o Papa Francisco.
Ao compreender as parangonas deixou cair a torrada e fixou-me o olhar.
— Mas vai voltar, como o Jesus voltou, não é, papá?
O silêncio instalou-se. Respirei fundo e respondi devagar.
— Não, não vai voltar, filho.
O sol entrava pelas frestas e pintava riscos de luz no chão. Vi o Miguel guardar cada uma daquelas palavras como quem descobre um inesperado mundo novo no mapa.
Não chorei, mas senti o peito apertar. Expliquei-lhe que Jesus era único e muito especial, como ele aprendera no filme de animação Rei dos Reis, que tínhamos visto nem há meia dúzia de dias no cinema.
— A morte é um sono profundo de que não se desperta, Miguel.
— Eu gosto muito do Jesus — interrompeu-me, com a sua voz doce e suave.
— Eu sei, filho — respondi com carinho enquanto lhe desalinhava o cabelo — o Papa Francisco era um homem bom, mas envelheceu e estava doente. Quando se morre, não se volta.
— Nunca mais?
— Nunca mais.
Pensativo, voltou à torrada, agora fria, e partiu-a com cuidado. Parecia ter aprendido que a vida se constrói entre chegadas e partidas. Chegadas, como a da mana de seis meses, cujo sorriso gracioso ilumina as nossas vidas. Partidas, como a do Papa, que nos deixa o seu exemplo intemporal de amor e simplicidade franciscana.
“Todos, todos, todos” — a voz do Santo Padre ressoava em mim.
Senti na expressão do Miguel que, ainda que por instantes, compreendeu a dureza de um adeus definitivo. Correu para a sala, abriu um livro e ficou ali a folheá-lo no chão com a calma de quem, ao seu ritmo, aprende a viver. Uma lição de cada vez.
Deixei-me estar diante da televisão, sem que a visse ou escutasse, enquanto terminava a minha torrada. Pensava na conversa que acabara de ter. Tão pura, tão natural como qualquer outra. Sem tabus ou adornos, foi possível tornar leve o pesado.
O melhor presente de um pai para os seus filhos — concluí — é a partilha das suas ferramentas mais poderosas. A aceitação do fim, sem temores nem rodeios, o reconhecimento de que chegadas e partidas são, apenas, a primeira e a última nota de belíssimas sinfonias, cujo significado só se alcançaria conhecendo toda a obra do Compositor.
O Miguel continuava a brincar satisfeito, como se nada fosse. A vida continuava, uma nota após a outra, serenamente, entre chegadas e partidas. E este instante, tão breve e espontâneo quanto profundo, ficará para sempre gravado no seu caminho e no meu.

João Mendes Coelho*

*Médico psiquiatra e adictologista

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