Edit Template

As crónicas de Manuel Zerbone nos 70 anos do Núcleo Cultural da Horta (Parte 1)

Nos passados dias 26 e 28 de Maio, foi apresentado na Horta e em Ponta Delgada
o livro «Crónicas Alegres 1884-1888» de Manuel Zerbone. Hoje e amanhã publicam-se as intervenções de Urbano Bettencourt e de Vasco Rosa

O espírito do tempo

Há cerca de três semanas, numa troca de mensagens coma minha amiga Paula Goulart, a propósito deste e de outros livros, escrevia-me ela: «Há algo de muito justo e salubre na devolução de um valor a uma comunidade, que de algum modo o perdeu. […]Tenho para com [Manuel Zerbone] uma dívida pessoal, contraída durante alguns invernos faialenses, quando tudo parecia absurdo e insuportável, e o lia discorrendo sobre o tempo, as cebolas e os pulgões. Punha-me no lugar!»
Sobre o modo e as circunstâncias em que nos vamos perdendo desses e de outros valores e eles de nós, haveria muito a dizer em termos de sociologia, de história, de cultura e de educação, sobre a sociedade, sobre a política, em suma, mas num contexto em que não tivéssemos de levar em conta o tempo disponível. E aos temas do tempo e das cebolas, podíamos acrescentar os bailes no Grémio e no Amor da Pátria, a crítica ao poder político e religioso, ao funcionalismo e à administração.
Todavia, e para retomarmos o tópico da justiça invocado na mensagem referida, importa dizer que o ato de hoje é, afinal, a conclusão de uma devolução começada em 1989 e prosseguida em 2005, com dois volumes de crónicas de Manuel Zerbone (Horta, 1855-1905), editados pela Câmara Municipal da Horta e ambos preparados por Carlos Lobão. Edição parcial (cerca de 20 crónicas, contra o total de 128 agora editadas), mas suficientemente elucidativa do valor documental dos textos de Zerbone e também dos seus procedimentos estéticos e literários, que permitiam situá-lo justamente no grupo de escritores do final de século faialense e que contribuíram para a dinâmica literária e cultural que a Horta então conheceu (vejam-se, a propósito, os trabalhos de José Enes, Pedro da Silveira e Tomás da Rosa).
E foi precisamente a partir desses dois volumes que, em 2018, apresentei ao VII Colóquio O Faial e a Periferia Açoriana nos séculos XV a XX uma comunicação sobre Zerbone e a sua crónica do quotidiano faialense e que teve, pelo menos, o mérito de suscitar em alguns dos participantes o desejo de adquirira obra do autor. Creio que foi este último aspeto que tornou ainda mais óbvia e premente a necessidade de se proceder à edição integral das crónicas de Manuel Zerbone. O Núcleo Cultural da Horta aceitou a minha sugestão e, depois, a proposta que lhe apresentei; Carlos Lobão tinha já feito a transcrição das crónicas não editadas em livro e partimos para um trabalho demorado, por questões textuais principalmente. O resultado é o que temos em mão, depois do trabalho gráfico de Vasco Rosa, responsável pelo lado material do livro enquanto objeto concreto e agradável ao olhar e à leitura, responsável também pelos índices. E chamo a atenção para estes — um importante auxiliar de leitura e de pesquisa, dada a grande variedade de tópicos, personalidades, instituições e acontecimentos.
Não vou repetir aqui aspetos que já abordei no Prefácio a este livro. Gostaria apenas de clarificar uma questão aí tratada de forma ambígua e de pôr em evidência o modo como Zerbone soube muito bem entender o ar, o espírito do (seu) tempo.
A começar, naturalmente, pela crónica como instrumento de comunicação e num tempo em que ela ganhou um estatuto próprio e se desenvolveu enquanto género fluido, entre o jornalismo e a literatura, possibilitando ao cronista um vasto leque de modalidades expressivas, do comentário à reflexão, ao relato e à e fabulação.
Mas o espírito do tempo é ainda, e principalmente, o tom humorístico das crónicas assinadas por Ramalho Ortigão e Eça de Queirós em As Farpas— com destaque notório para a lição do último deles, que Zerbone soube interpretar e aplicar ao seu contexto social.
Vale a pena trazer aqui um breve excerto da «crónica de apresentação» das Farpas, da autoria de Eça, com data de junho de 1871: «Nós não quisemos ser cúmplices na indiferença universal. E aqui começámos, sem azedume e sem cólera, a apontar dia por dia o que poderíamos chamar — o progresso da decadência. Devíamos fazê-lo com a indignação amarga de panfletários? Com a serenidade experimental de críticos? Com a jovialidade fina de humoristas? Não é verdade, leitor de bom-senso, que neste momento histórico só há lugar para o humorismo? […] Vamos rir, pois. O riso é uma filosofia. Muitas vezes o riso é uma salvação. E em política constitucional, pelo menos, o riso é uma opinião» (Queirós, Uma Campanha Alegre).
Na verdade, a «jovialidade fina» de que falava Eça atravessa, em grande parte, a obra de Zerbone sob o registo da alegria para que reenvia o seu título, Crónicas Alegres, e o riso do escritor faialense é também ele uma opinião e um combate, ou uma «peleja», para utilizar ainda um termo de Eça.
Como se sabe, Eça de Queirós reuniu os seus textos d’As Farpas num volume autónomo a que deu o título de Uma Campanha Alegre (1890); na «advertência» que então escreveu, para melhor situar os novos leitores, afirma Eça: «As páginas deste livro são aquelas com que outrora concorri para as FARPAS, quando Ramalho Ortigão e eu, convencidos, como o Poeta, que “a tolice tem cabeça de touro”, decidimos farpear até à morte a alimária pesada e temerosa. […] Todo este livro é um riso que peleja. Que peleja por aquilo que eu supunha a Razão. Que peleja contra aquilo que eu supunha a Tolice.»
Regressando ao contexto local, não deixa de ser sintomático que as crónicas de Zerbone tenham saído no jornal O Açoriano, fundado 1883 por Manuel Garcia Monteiro, o poeta de Rimas de Ironia Alegre (Boston, 1896), acerca do qual escreveu Carlos Jorge Pereira, investigador da Universidade Aberta: devemos «considerar Garcia Monteiro, muito provavelmente, o mais completo poeta satírico entre, de um lado, Tolentino e Bocage e, do outro, um Alexandre O’Neill». E, na verdade, Nicolau Tolentino é um dos autores divulgados nas páginas d’O Açoriano, num propósito em que coincidem o gosto literário do seu fundador-diretor e o propósito de formação de um público. Embora começadas a publicar em novembro de 1884, quando Garcia Monteiro imigrara já para os Estados Unidos, as crónicas de Zerbone encontravam nas páginas d’ O Açoriano o seu ambiente natural e … alegre.
Que o Núcleo Cultural da Horta tenha decidido promover esta edição e integrá-la nas celebrações do seu 70.ºaniversário é um gesto que o dignifica, ao mesmo tempo que presta justiça a um cronista de alto nível, trazido agora e de forma mais imediata ao nosso convívio e ao de quantos quiserem estudara sociedade da Horta naqueles anos finais da década de 1880.
Se é possível alguém sentir-se feliz com um livro alheio, então eu estou mesmo feliz com este livro de Manuel Zerbone.

ZERBONE, Manuel (2025), Crónicas Alegres, 1884-1888. Organização de Carlos Lobão e Urbano Bettencourt, índices e produção gráfica de Vasco Rosa. Horta: Núcleo Cultural da Horta.

QUEIROZ, Eça de (2001), Uma Campanha Alegre (de As Farpas). Lisboa: Livros do Brasil.

Urbano Bettencourt

Edit Template
Notícias Recentes
WestJet anuncia nova rota directa Toronto – Ponta Delgada para o Verão 2026
Tribunais açorianos recebem 3.372 novos processos em apenas três meses
Novobanco avança com 20 milhões para novo projecto hoteleiro em São Miguel
Assembleia madeirense quer salvaguardas para ligações da TAP à Madeira e aos Açores após a reprivatização
Empresários formalizam proposta para a compra da Azores Airlines
Notícia Anterior
Proxima Notícia

Copyright 2023 Diário dos Açores