Parte II – Critérios técnicos e prioridades de intervenção
Para ultrapassar este bloqueio estratégico, é necessário identificar, de forma sistemática, os factores que devem orientar o investimento público na rede aeroportuária regional. A matriz técnica que se apresenta abaixo resulta da ponderação dos seguintes critérios:
- Grau de Limitação Técnica: nível de constrangimento que a infraestrutura actual impõe à operação segura e eficiente de aeronaves comerciais modernas, tendo em conta factores como o comprimento da pista, a existência de obstáculos, a topografia envolvente e a orientação face ao vento dominante.
- Restrições Operacionais: esta métrica traduz a frequência e severidade com que as operações aéreas são afetadas por factores como meteorologia adversa, orientação desfavorável da pista face ao vento dominante, limitações de carga ou passageiros, ou ausência de redundância operacional. A classificação reflecte tanto a experiência histórica de cancelamentos e desvios como a previsibilidade das condições de operação em cada ilha.
- Peso Social: indicador da relevância da infraestrutura aeroportuária para a vida quotidiana das populações locais, incluindo o acesso a serviços de saúde, educação, justiça, mobilidade laboral e ligação com familiares. Valoriza-se a dependência estrutural da ilha em relação à via aérea, em especial nos casos em que não há alternativa marítima regular ou esta é insuficiente para garantir continuidade territorial efectiva.
- Isolamento Geográfico: avalia o grau de afastamento da ilha face a centros urbanos regionais, a inexistência de alternativas logísticas próximas (outras pistas, portos operacionais, acessos rodoviários internos) e a sua posição periférica dentro da malha regional. Ilhas sem redundância próxima e com fraca integração funcional na rede territorial são classificadas com maior isolamento.
- Potencial de Retorno Operacional: capacidade da intervenção gerar valor funcional (aumento de regularidade, redundância na rede, reforço turístico, carga ou flexibilidade operacional).
A tabela acima sintetiza a avaliação técnica das nove ilhas açorianas, considerando o comprimento (ASDA) da pista mais limitativa e os critérios definidos.
Harmonizar, com critério
A melhoria da rede aeroportuária regional não deve ser encarada como um esforço de uniformização. As Flores e São Jorge exigem previsibilidade e fiabilidade. A Graciosa merece reforço técnico. E a Horta, o Pico ou Santa Maria querem consolidar-se como plataformas de apoio regional. O que se impõe é um exercício de harmonização estratégica, difícil mas não impossível de resolver4 em que cada investimento seja justificado pela sua função específica no sistema. O Corvo requer uma solução de sobrevivência.
No caso concreto da ilha do Corvo, a ampliação da pista em mais 300 metros representa uma necessidade operacional incontornável. Estimativas prudentes apontam para um custo situado entre 12 e 18 milhões de euros, podendo ascender a 25 milhões em cenários com condicionantes ambientais ou de engenharia mais complexa, resultante da implantação orográfica. Importa, contudo, sublinhar que este investimento poderá beneficiar de diversas fontes de financiamento comunitário. No quadro do programa Açores 2030, do FEDER e do Mecanismo Interligar a Europa, bem como através das disposições específicas do artigo 349.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, é possível alcançar cofinanciamentos até 85% do valor elegível. Estes apoios reconhecem o estatuto dos Açores como Região Ultraperiférica e priorizam intervenções que reforcem a coesão territorial, a mobilidade interilhas e a segurança das populações. Assim, a análise da decisão não deve centrar-se no retorno económico directo, mas antes na sua dimensão estratégica: garantir a acessibilidade permanente, reforçar a resiliência operacional, preservar o direito à mobilidade e cumprir os deveres de solidariedade institucional para com uma comunidade insular particularmente exposta e vulnerável.
A equidade territorial não é dar o mesmo a todos, mas sim garantir que cada ilha tem aquilo de que efectivamente precisa para estar ligada ao todo arquipelágico. Essa é que é a verdadeira política pública: aquela que trata com justiça o que é diferente, sem perder de vista o bem comum.
2 ASDA (Accelerate-Stop Distance Available): distância disponível para um avião interromper com segurança a descolagem após aceleração até à V1. Corresponde à TORA (Take-Off Rwy Available), acrescida da extensão da stopway, se existente. É relevante para operações em que se antevê a possibilidade de rejeição de descolagem e determina os limites operacionais da aeronave em pista seca e molhada, segundo os parâmetros definidos pelo fabricante e pela certificação EASA/FAA.
3 As “Restrições Operacionais” da matriz foram atribuídas com base numa avaliação técnica qualitativa (1 a 5), dos seguintes factores principais:
- Comprimento efectivo da pista (TORA e LDA):
Valores inferiores a ~1.450 m impõem limites substanciais à operação de aeronaves como os ATR 42/72-600, especialmente em condições meteorológicas adversas ou com carga plena. - Limitações topográficas e de expansão:
Ilhas com limitações físicas (ex: relevo acentuado, zona urbana próxima, mar adjacente) têm menos margem para obras e operações seguras — como é o caso notório do Corvo e, em certa medida, das Flores. - Capacidade de operação com aeronaves alternativas:
Verificou-se se a pista permite actualmente a operação com aeronaves modernas (ATR 42/72, Q400) sem penalizações severas de carga ou passageiros. - Histórico operacional (cancelamentos/desvios):
Ilhas com pistas curtas e orientação menos favorável ao vento dominante apresentam mais cancelamentos ou limitações operacionais — penalizando a regularidade e a resiliência. - Disponibilidade de redundância regional:
Se a ilha tem outro aeroporto próximo que possa servir como alternativa operacional (por exemplo, o Pico em relação à Horta ou a Terceira em relação a São Miguel), a penalização foi menor. - Victor Silva Fernandes *
- Comandante jubilado da aviação comercial e Lead Arranger de um consórcio independente interessado na reestruturação da SATA