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Condenação, de Pedro Almeida Maia

“Muitos outros motivos de interesse e reflexão encontrará o leitor nesta obra de Pedro Almeida Maia. Condenação é, como toda a boa literatura, uma reflexão sobre o ser humano. A ponto, apenas, um desses interesses: a presença da açorianidade.”

O primeiro livro que li do escritor foi A Escrava Açoriana, uma sugestão de Onésimo Teotónio de Almeida. Apreciei imenso e dei conta disso numa crónica. O segundo foi Ilha-América, publicado em 2020. Passado algum tempo, veio-me parar às mãos A Força das Sentenças, de 2023, excelente retrato de um doente de Alzheimer. Acabo de ler o mais recente livro que publicou, Condenação. A História de um Gangster Açoriano na América [Lisboa: Cultura Editora, 2025], o terceiro romance do escritor dedicado à emigração açoriana, com um tom diferente dos dois anteriores. Neste, a visão romântica da aventura da emigração desaparece, porque, por um lado, nem todos os açorianos que vão para a América têm êxito e, por outro, alguns não vivem de acordo com a moral de mínimos aceite pela generalidade da nossa sociedade, como é o caso do protagonista de Condenação.
Comecei a leitura pelos “Agradecimentos” (pp. 319-322), o que não deve ser frequente em leitores de romances. Nestas páginas, o escritor fala-nos da pesquisa que antecedeu a escrita do livro e, além disso, permite-nos perceber a importância dos que o rodeiam na elaboração da sua obra, duas coisas que muitas vezes escapam a muitos leitores da escrita criativa. A primeira é indispensável para que a trama seja credível e a segunda permite constatar que se, por um lado, a escrita é um ato solitário, por outro, para esse ato as relações do escritor com os que o rodeiam é fundamental; lembremos a afirmação de Ortega y Gasset: “eu sou eu e a minha circunstância”. Ninguém é uma ilha fechada sobre si e, muito menos, os escritores. Lido o romance, compreende-se a extensão da lista de agradecimentos. A ação decorre no primeiro quartel do século XX, nos Estados Unidos da América, fundamentalmente em alguns estados da Nova Inglaterra. É uma estória da diáspora açoriana num mundo surpreendente para muitos leitores. Uma família micaelense: pai, mãe e sete filhos – dos nove nascidos morreram dois antes da partida, um afogado no mar e outro por doença – embarca para a América e instala-se em New Bedford, um mundo completamente diferente daquele que deixou para trás. Está-se em plena “Lei Seca”: era proibido produzir, comercializar e consumir bebidas alcoólicas que, contudo, circulavam em abundância clandestinamente e o seu comércio fazia a fortuna de Al Capone e de outros gangsters. Era proibido beber álcool, mas permitido comercializar armas. O crime organizado era uma realidade bem visível.
É neste meio em que “[h]avia delinquência por todo o lado” (14) que os “Silver” (em São Miguel eram “Silva”) se vão instalar. Salvador, o filho mais novo do casal e herói do romance, tinha três anos à chegada ao Novo Mundo. Em casa tem uma família açoriana com a cultura das ilhas, completamente distinta da que caracteriza o ambiente onde vai crescer.
Salvador Silver, embora inteligente e de raciocínio preciso, na escola é péssimo aluno, com sinais de sofrer de epilepsia e de ter uma duvidosa sanidade mental. Desiste de estudar e pouco a pouco vai-se dedicando a pequenos roubos. Porque rendem bem, para quê procurar emprego(41-42)? Aos dezassete anos já indiciava o descaminho que tomaria na vida adulta: a iniciação em pequenos delitos encaminhou-o para a “República do Crime” (44): tornou-se gangster. No “Prólogo”, encontramos Salvador, hoje “um gangster esquecido” (89), integrado no gangue de Joe Morelli, famoso no mundo do crime, a quem a comunicação social americana da época deu palco, a participar no célebre caso Sacco-Vanzetti: o assalto e o roubo das caixas que transportavam o dinheiro dos salários dos trabalhadores de duas fábricas de calçado, golpe de que resultaram duas mortes, cuja investigação irá prolongar-se pelo resto da vida de Salvadore contribuirá para vários adiamentos da execução da sentença à cadeira elétrica a que foi condenado por um assassinado praticado num último assalto em que participou.
Na personalidade de Salvador há uma faceta intrigante: uma certa timidez, que se explica em grande medida, como a leitura do romance nos permite perceber, pelo desamparo que o acompanhou ao longo da vida: a pobreza, a morte do pai, a debilidade psicológica, a epilepsia, a necessidade de consumo exagerado de álcool para aguentar a pressão de profissional do crime. O interesse fundamental do romancista ao escrever o seu Condenação não está, contudo, na narração dos crimes praticados pelo protagonista, mas “nas suas astúcias”. Nas palavras de Almeida Maia: “o âmago da nossa história está nas astúcias de Salvador Silver” (20).
O livro é interessentíssimo por várias razões que vão desde a descrição da sociedade americana da época e do seu funcionamento, ao lugar que nela teve o crime organizado. Em meu entender, porém, o que talvez seja mais interessante na obra são os constantes contrastes que pautam o viver de Salvador Silver. O protagonista do romance teve em casa uma educação tradicional açoriana com uma tábua de valores clara, distinta da que vai encontrar fora de portas. Em momentos de apuro, formula o propósito de procurar um trabalho honesto, casar e deixar a vida do crime; mas, passada a aflição, estas intenções são rapidamente esquecidas. Para resolver ou atenuar a dissonância dessas escalas de valores, Salvador Silver afoga-se em álcool.
Logo no início do romance se percebe que a escala de valores que acompanha o “Açoriano”, como lhe chamava Morelli, chefe de gangue, se foi alterando. Num momento de balanço para consigo mesmo, após o roubo das caixas com o dinheiro dos salários dos trabalhadores das fábricas, Salvador sente-se aliviado porque apenas tinha participado num roubo; é verdade que tinha havido duas mortes, mas não fora ele o atirador. Nessa altura, portanto, era ainda bastante clara a distinção entre roubar e matar. A lógica da vida de gangster, porém, pouco a pouco vai levando à evolução dos seus critérios morais. Mas não é só a alteração na escala de valores do protagonista ao longo da vida e as suas astúcias que Almeida Maia lhe aponta ao longo da narrativa que suscita a reflexão do leitor. Ao aperceber-se do contexto interior e exterior em que age Salvador, somos levados a questionar-nos sobre a efetiva responsabilidade moral e mesmo penal do protagonista. Aliás, esta questão é levantada pelo seu advogado de defesa que tenta, junto do tribunal, a declaração por peritos da insanidade do seu constituinte e, por esta via, salvá-lo da cadeira elétrica.
Muitos outros motivos de interesse e reflexão encontrará o leitor nesta obra de Pedro Almeida Maia. Condenação é, como toda a boa literatura, uma reflexão sobre o ser humano. A ponto, apenas, um desses interesses: a presença da açorianidade. Como disse acima, a ação do romance passa-se nos Estados Unidos, mas os Açores estão sempre presentes ao longo de toda a narrativa. Quando os Silvers viram em Ponta Delgada o navio em que iam embarcar, “[e]stava descoberto o caminho marítimo para a Améria” (62), mas os Açores, São Miguel concretamente, que lhes modelavam a alma não ficaram no cais; embarcaram com eles.
Com esta minha crónica sobre Condenação. A História de um Gangster dou apenas ao leitor uma pálida ideia da riqueza, qualidade e interesse do romance. Nele Almeida Maia faz uma longa e profunda reflexão sobre o ser humano, na linha da grande literatura e da filosofia. Aguardemos o continuar dessa reflexão num seu próximo livro.

José Henrique Silveira de Brito

Ofir, agosto de 2025

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