Há uma nova editora nos Açores e promete boas coisas, a julgar por este Laudalino da Ponte Pacheco 1963-1975 que está a deixar em êxtase o pequeno mundo dos livros de fotografia. O fotógrafo da micaelense vila da Maia, um escriturário da fábrica de tabaco local, emerge do esquecimento — que até Carlos Enes lhe concedera no seu A Fotografia nos Açores: dos primórdios ao terceiro quartel do século XX (2011, 94 pp.) — a partir do seu extenso arquivo de imagens, depositado em Junho de 2018 por herdeiros na Santa Casa da Misericórdia do Espírito Santo da Maia, e que aparece neste livro devidamente visto, escolhido e comentado por gente conhecida na antropologia açórica, na história fotográfica, mas também na museografia insular: João Leal, Margarida Medeiros e Maria Emanuel Albergaria, respectivamente. A esta máxima qualificação dos intervenientes num projecto editorial junta-se o design gráfico todo contemporâneo de José Albergaria e a competência industrial da Nortprint. E esta é mais uma prova provada de que nas Ilhas há uma nova geração atenta e lúcida, em franca afirmação de capacidades artísticas e literárias e com «mundo» bastante para criar ali uma polaridade cultural dinâmica e consolidada, merecedora até de apreço e curiosidade internacionais, desde que os diversos poderes estejam plenamente conscientes disso e não sejam eles próprios — e paradoxalmente — obstáculos e travões ao pulsar livre da vida cultural da região, como duas decisões políticas muito recentes parecem indiciar.
Laudalino da Ponte Pacheco começou a fotografar por volta de 1954, quando o irmão Dionísio, emigrado no Canadá, lhe enviou uma máquina fotográfica. Nas quatro décadas que ainda viveu, acumulou «um espólio de c. 144 mil fotografias e alguns filmes» (Albergaria, p. 20), crê-se que todo ele dedicado às gentes originárias da costa norte da Ilha de São Miguel. A sua personalidade empreendedora («um fura-vidas», sic) e a mobilização da família na divulgação e venda levaram o fotógrafo a ampliar a par e passo o seu raio de acção e criar novos núcleos clientelares, sempre numa ocupação à margem do seu horário na Fábrica de Tabaco da Maia, mas que Margarida Medeiros admite confundir-se com «uma ocupação a tempo inteiro, quase uma obsessão, pela quantidade [de fotografias] deixada» (p.43). De início, uma bicicleta, depois uma motocicleta básica e mais tarde motocicletas de melhor qualidade levavam-no a toda a parte, registando procissões, romarias quaresmais, festas de verão, a incontornável matança do porco, mascaradas de carnaval, piqueniques, casamentos, nascimentos, baptizados, velórios, emigrantes, ou procurando clientes de ocasião à saída das missas domingueiras, atraindo-os com cenários montados e triciclos ou carrinhos de criança. Alguma aprendizagem com Gilberto Nóbrega (1919- -2003), cabeça do mais importante estúdio de Ponta Delgada, a aposta em bom equipamento — Laudalino «chegou a ter duas Leicas» (p. 31) — e o zelo pessoal com ele também não podem ser subestimados. Em 1967, ganhou o primeiro prémio numa exposição de fotografia por amadores na Ribeira Grande (p. 34).
Maria Emanuel Albergaria diz que as imagens de Ponte Pacheco «constituem documentos riquíssimos para a compreensão do território antropológico, sociológico e histórico da ilha de São Miguel» (p. 36), mas João Leal vai mais longe, defendendo que «a partir delas podia alguém ter escrito, logo nos anos 1960, uma monografia etnográfica sobre São Miguel» (p. 122), capaz de mostrar, entre outros aspectos, «a importância da família na vida açoriana», mas «uma família elementar [que] não atomiza as relações sociais, mas é o centro a partir do qual se constroem redes de relacionamento social densas que, entre parentes, vizinhos e amigos, conectam entre si dezenas de pessoas» (p. 124). É isso que, sem dúvida, explica a presença e a acção do fotógrafo em momentos extremamente singulares como o parto em casa (p. 91), a extrema-unção (p. 154) ou velórios (pp. 152-53).
O antropólogo também reconhece neste portefólio a «continuada importância dos laços familiares e de parentesco no novo contexto transnacional» da emigração ou diáspora americana e canadiana, e o «seu potencial emancipador da condição feminina», decisivo para muitos não retornos à terra-mãe: «os maridos queriam, mas as mulheres não estavam para prescindir da liberdade conquistada na América» (p. 126), simbolizada pela fotografia da p. 178, uma senhora visivelmente entusiasmada ao volante dum Chevrolet. Essa leitura é assaz relevante pois contextualiza — a palavra é do autor e do título do seu texto — as fotografias de Laudalino Ponte Pacheco, fazendo notar a «coexistência contraditória desse persistente fundo agrário e tradicional com bolsas de modernização — tímidas, é certo — que iam gradualmente modificando o arquipélago», bolsas de modernização, aliás, desigualmente distribuídas» geográfica e socialmente.
De facto, a pobreza das freguesias rurais dos Açores — e repare-se que estamos nos anos 1950-70 — é flagrante nas proles numerosas (pp. 62, 72, 92, 93, 104, 111), nos pés descalços de crianças (pp. 79, 89, 128, 130, 150) e de adultos (pp. 67, 96, 97), nas paredes dum quarto de dormir forradas a folhas de jornal (p. 95) ou na insalubridade da maioria dos interiores domésticos (pp. 93, 96, 97, 98, 99, 102, 103, 135) e comerciais (p. 161, 164), tanto quanto — inversamente — nas roupas «de ver a Deus» ou reservadas aos dias festivos, mesmo quando os petizes são fotografados com bezerros, porcos, cabras, galinhas e pombos (pp. 129, 136-37, 142-43), nos ambientes próprios destes. Na p. 146, num pátio decadente e sujo, onde a um canto bácoro come dum alguidar velho, três irmãos e a mãe deixam-se retratar tendo, aos pés, reluzentes brinquedos de lata; eventualmente, a fotografia destinar-se-ia ao parente distante que os ofereceu. Nas pp. 56-57, dois prováveis emigrantes em visita exibem fatiotas berrantes — dessas que hoje, quase sem acreditar no que vemos, encontramos em lojas de segunda mão, ditas vintage — como sinais distintivos do seu suposto sucesso além-mar, que contrastam com o quase uniforme escolar costurado em casa das jovens irmãs surpreendidas a caminho das aulas (p. 69) ou com a roupa modesta e muito mal cortada das figuras retratadas nas pp. 96-97.
Essa diferenciação entre quem partiu e quem ficou também está bem patente no contraste, nas pp. 110 e 111, entre as velhas casas baixas em basalto e telhado coberto com canas e a recente moradia de dois pisos do emigrante com chapéu texano, ou nas pp. 74 e 75, entre o rapaz de blazer com monograma, óculos de massa e cabelo cortado à Elvis e o menino com roupa feita em casa e sandálias já muito gastas. Ou, até, nas pp. 66 e 67, entre o miúdo que num pátio manobra pequeno carro americano de brincar e os três homens que junto a um muro bebem vinho. Senão mesmo, na justaposição gráfica entre dois carros de corrida que se abastecem e a velha camioneta de carreira que sobe estrada de via única (pp. 172-73).
Um bom livro explica-se também na sua subtil narrativa visual.
A reposição da obra fotográfica de Laudalino da Ponte Pacheco não vem apenas lembrar como estavam os Açores há meio século, num transe evidente entre arcaísmo e modernidade, que só a presença norte-americana na Terceira e a francesa nas Flores então pareciam querer ou poder contrariar. Os fundos comunitários que vieram 30 anos depois foram um poderoso factor de desenvolvimento e de coesão territorial, mas a sociedade açoriana permanece ainda amarrada por constrangimentos antigos, desertificação demográfica e índices de desenvolvimento humano bastante preocupantes, cuja reversão ou solução parece tarefa gigantesca, difícil de cumprir.
Que uma nova editora açoriana venha pôr o dedo nessa velha ferida parece–me começo que merece ser saudado vivamente.
Vasco Rosa
Originalmente publicado no «Observador», a 19 de Fevereiro de 2022