Uma ambição legítima de S. Miguel e da RAA
É costume aplicar-se ao Hospital do Divino Espírito Santo (HDES) as designações, quer de “hospital de 1ª linha”, quer de “hospital de última linha”.
Não é indiferente, do ponto de vista conceptual, utilizar uma ou outra designação.
Um hospital de 1ª linha não é necessariamente um hospital “Central”, este sim de “última linha”. Nem mesmo quando iniciou a sua actividade de novo, há cerca de 25 anos, sendo a maior e mais diferenciada estrutura hospitalar da Região – durante anos a única unidade com certificação internacional de qualidade -, o HDES foi considerado como o “Hospital Central dos Açores”.
Satisfazer essa designação implica cumprir prerrogativas técnicas e estruturais diferenciadas e responsabilidades acrescidas, quer do nível da capacidade assistencial e de exigência clínica, quer de proporcionar essa capacidade ao serviço de todos os doentes da Região que dela necessitem.
Pensar deste modo hierarquizado toda a estrutura de Cuidados Hospitalares (CH) nunca foi feito na Região. Um projecto desses, infelizmente, nunca foi contemplado, nem sequer no plano dos princípios jurídicos do Estatuto do Serviço Regional de Saúde (ESRS) onde se refere, apenas, o dever de os Hospitais “colaborarem” uns com os outros: desiderato que nem sequer foi cumprido ao longo destes quase 45 anos de SRS.
Donde, insisto no que venho dizendo em textos anteriores, ser fundamental pensar-se, no todo regional, numa reorganização profunda do Sistema de Cuidados do SRS nos quatro grandes vectores da sua actividade: 1) Cuidados Primários de Saúde (CPS); 2) Cuidados Hospitalares; 3) Cuidados Continuados e Paliativos; 4) Cuidados em Medicina Convencionada.
O objectivo final é prestarem-se Cuidados Integrados de Saúde (CIS), não só porque são mais eficientes em termos de “ganhos de saúde” como, muito importante, são a forma mais coerente e responsável de aplicar os recursos humanos e financeiros disponíveis (e finitos).
Esta é uma tarefa gigantesca, exigente, e que demorará anos a implementar, em parte pelo atraso reformador em que nos deixámos cair. E que implica muita solidariedade social e política, envolvendo todas as ilhas, na forma de garantir uma robusta equidade e coesão nas decisões e projectos. É um desígnio suprapartidário, civilizacional, de regímen da própria Autonomia Açoriana. O sistema de saúde de uma Região como a nossa – a sua organização, qualidade e eficiência – é uma das superestruturas fundamentais (como a Educação e Cultura) à dinâmica de vida económica e social. Fala muito da coesão e da ambição de um povo com ricos e fortes elementos identitários.
Num momento de decisões importantes que envolvem o HDES e o seu futuro – como é bom de ver, pelo seu papel central nos cuidados do SRS – não podemos permitir que estas sejam uma prorrogativa exclusiva, encerrada em cúpulas de decisores político-governativos ou por eles nomeados, que acabam por traduzir opções técnicas muito questionáveis, não consensualizadas, dispendiosas e de retorno impossível em várias décadas futuras.
Desde há 3 meses que assistimos a uma calamidade dentro de outra calamidade – o hospital de “última linha” dos Açores, passado todo este tempo, não reabriu na sua plenitude, nomeadamente nas vertentes mais importantes e diferenciadas de cuidados, como sejam, o Serviço de Urgência (SU), a Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), o Bloco Operatório (BO), a Unidade de Hemodinâmica (UH) cardíaca e vascular, as enfermarias de internamento das diversas especialidades médicas. E já podia ter visto restabelecida a sua funcionalidade não fossem tomadas decisões com base em argumentos espúrios e de oportunismo político, estas traduzidas no empolamento dos acontecimentos relacionados com supostas averiguações policiais, eventuais responsabilidades criminais, extensão putativa de danos a estruturas não afectadas pelo fogo, problemas de “qualidade do ar e da água”, de pseudo-segurança de algumas instalações (que já deveriam neste tempo estar resolvidas ou colocadas no respectivo plano de importância), de gastos financeiros em excesso, etc: enfim, um conjunto nebuloso de razões que pretensamente justificam benévolas decisões técnicas, ditas “muito ponderadas” e de “futuro”.
Tudo isto está a custar muito caro à qualidade assistencial dos doentes, às condições de trabalho de muitos trabalhadores do Hospital e, pretensamente, às finanças públicas. E mais problemático se vai tornar ainda se certo caminho assente em realização de obras permanentes e duradouras sobre a estrutura actual for teimosa e obstinadamente tomado.
Somos a favor da criação imediata de um programa de desenvolvimento conceptual para um novo Hospital, construído de raiz, para trabalhar e articular intimamente com a unidade existente, num conceito de Centro Hospitalar e de Integração de Cuidados.
É ainda possível conter os impactos de lateralidade, desnecessária e distrativa, sobre a urgente e plena reabilitação do funcionamento do HDES (ao nível prévio ao incêndio), e resultante da construção do dito Hospital Modular, enfim, tornando-o útil, já que parece inevitável, limitando-o nas ambições programadas (e contratualizadas?) transferindo-as para um plano mais vasto e mais ambicioso, a médio-prazo, de construção de uma nova Unidade Hospitalar complementar da actual.
(cont.)
Guilherme Figueiredo*
*Ex-Director do Serviço de Reumatologia do HDES/
Dir. Executivo da CAL-Clínica