Qualquer sistema político de um povo nunca está completo: a política acompanha necessariamente a vida das pessoas e essa vida é perene porque existem sempre pessoas e novas pessoas, e mutável porque a cada dia que passa novas dificuldades surgem. A vida não tem solução, diz-nos António Damásio, porque encerrada uma via, surgem outras. A política, pois, também é um ser vivo como instituição da sociedade: como nasceu, logo, manter-se-á ao sabor dos tempos e das vontades.
Qualquer pessoa e em cada momento geracional, embora tenha as suas dificuldades, tem uma matriz de vivência coletiva, a qual, por via de regras naturais e intelectuais, é boa: a maioria vive em relativa paz e com relativo respeito pelo outrem. Ninguém sobrevive, num sentimento de eternidade, sem possuir limites de qualidade humana; limites para si próprio, limites quanto ao outrem. O mesmo acontece com a política, como qualquer pessoa, e em cada momento geracional, embora tenha as suas dificuldades, encontra sempre as melhores soluções para as populações. Se assim não fosse, com toda a certeza regressaríamos aos antigos sistemas tribais ou, pior, aos sistemas mais antigos onde o mais forte vencia tudo e todos em todos os níveis; e assim, depois de milhares de anos em evolução, regressaríamos a um estádio de vida humana mais animal do que civilizacional.
Em síntese, portanto, a política tem de acompanhar a sociedade. É um imperativo de sobrevivência de qualquer sistema e sobretudo de qualquer sociedade.
A Região Autónoma vive num marasmo paupérrimo que é muito perigoso: se os níveis de insatisfação forem superiores ou mais significativos do que os níveis de satisfação, podem surgir com força perguntas difíceis de responder: para que nos serve a autonomia?; um modelo diferente não seria melhor? Perante estas perguntas que são de retórica sabendo que esta está sempre baseada nalguma realidade concreta, não devemos meter a cabeça na areia; o resultado desse tipo de divórcio ajuda a perpetuar os problemas e, pois, a aumentar os níveis de insatisfação e aquilo que antes era para constituir-se um bem coletivo positivo de esperança, torna-se num oposto.
A autonomia política este ano de 2024 perfez cinquenta anos de idade; em 2026 a Região Autónoma perfará, por sua vez, o seu meio século. Meio século… uma eternidade!
É forçoso que os líderes dos partidos do arco governativo, o PSD-A e o PS-A que têm cerca de setenta por cento do eleitorado, comecem a preparar o futuro já para hoje. Não é crível que fiquemos mais meio século assim como estamos. O meio século passado fez sentido e ainda faz algum sentido porque foi uma novidade, porque com o sistema autonómico transformamos o “Estado unitário” em “Estado unitário regional”, porque foi natural receber as atribuições e serviços e manter idêntico modelo sem aprofundamento e adaptação ao arquipélago e à modernidade política; mas já não faz sentido; de modo algum.
Já hoje não é aceitável três pontos autonómicos, três matrizes essenciais para a sobrevivência do sistema autonómico, e que são os seguintes:
Primeira matriz necessária: o sistema de governo autonómico não permite fiscalização política governativa. Isso, além de não ser aceitável em democracia, viola a Constituição: o poder legislativo autonómico, idêntico ao do Estado, em regular direitos, liberdades e garantias, não pode deixar de possuir balizas democráticas. A mais simples, a mais utilizada, a mais credenciada – é a~fiscalização política governativa que não existe no sistema autonómico. Enquanto a Região Autónoma mantiver essa tessitura constitucional inconstitucional – nunca teremos liberdade e progresso político.
Segunda matriz necessária: a necessária cientificação da autonomia, isto é, o seu estudo permanente de forma sistémica. Para nos entendermos, algo como a estatística: sem ela os governos não têm meio de governar porque governariam às escuras sem saber dados essenciais, como evolução populacional, o emprego, a indústria. Não é possível que a Região Autónoma, seja ela própria, seja a sociedade através dela, sobreviva sem essa componente e por três motivos desde logo: porque a qualidade política de desenvolvimento e mais ainda quando desenvolvimento harmonioso num esquadro arquipelágico, necessita de estudo; porque a autonomia política é uma cunha num sistema global dum país da União Europeia; e porque em mais de oitocentos anos de unidade nacional é muito difícil manter parâmetros de unidade regional adentro dessa unidade nacional.
Terceira matriz necessária: de uma administração pública moderna, por constituir-se sabedora, célere e de qualidade. Sem isso não existe autonomia de qualidade, é impossível porque esta depende daquela.
Estas matrizes poderiam ter sido desenvolvidas ao longo dos cinquenta anos de conceção da autonomia e dos quarenta e oito anos de Região Autónoma. Mas não o fizemos: de um lado, porque não o quisemos fazer; e de outra banda, porque não o soubemos fazer. E talvez porque não sabíamos que existia essa necessidade impreterível, apesar de desde há pelo menos três décadas que as desenvolvemos e sublinhamos em vários estudos. Agora é mais difícil porque já perdemos, todos, quase uma vida. Já só será possível para amanhã – e mesmo assim está por determinar; e os sinais são negativos porque a mediocridade e a malvadez políticas nunca foi tão elevada.
Agora é mais difícil porque politicamente é o mais difícil. Mas, ao mesmo tempo, é mais fácil se começarmos pelo mais fácil em termos técnicos: convencer os novos políticos, os jovens políticos, da necessidade de implementação de um sistema de governo autonómico que respeite os cidadãos insulares: é impensável imaginar que daqui a cinquenta anos a autonomia política mantenha-se sem um sistema de governo autonómico que garanta a fiscalização política governativa. Antes disso cairemos de podres; e se o mundo entrar em guerra à escala planetária, poderá acabar ainda mais cedo. Depois desse sistema estar implementado – será bem mais fácil a cientificação da autonomia e a administração moderna; o próprio sistema, porque terá fiscalização governativa, e mais a mais idêntica à do Estado, empurrará para estas duas matrizes.
Enquanto estamos a ler este texto é admissível estarmos sentados ou em quietude. Mas o tempo urge: a vida é para a vivermos como pessoas, felizes ou pelo menos com esperança. Sem uma nem a outra a vida não tem brio. Erguei-vos porque o tempo urge por entre a bruma.
Arnaldo Ourique