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16 Dias de Ativismo pelo fim da Violência Contra as Mulheres – A propósito da “ideologia de género”

“Sendo claro que género tem um quê de abstrato, visto que toca as mentalidades e normas culturais, o tardio reconhecimento das dimensões de género das desigualdades teve efeitos devastadores, bastante palpáveis: quantas mulheres não terão vivido situações de violência doméstica no silêncio, enquanto fazia-se saber que “entre marido e mulher não se mete a colher”.”

Já lá vão mais de dois séculos – 232 anos, mais precisamente – quando Mary Wollstonecraft (1759-1797) publicou Uma Vindicação dos Direitos da Mulher (1972), aquela que é considerada uma das primeiras obras feministas de que há memória.
Nesta obra, a filósofa e ativista questiona a exclusão das mulheres da cidadania e da esfera pública – um questionamento que não foi inédito na época, mas estava a ser ignorado ou até censurado.
Ainda em pleno processo constituinte, em 1789, um grupo de mulheres apresentou uma Petição à Assembleia Nacional Francesa assinalando a hipocrisia de uma “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” que rompeu com séculos de despotismo, proclamando a liberdade do Povo Francês, mas deixou de fora as mulheres. No entanto, apesar de milhares de petições terem sido discutidas na Assembleia, esta foi totalmente ignorada.
Mais tarde Olympe de Gouges apresentou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã depois da Constituição de 1791. A declaração segue, ponto por ponto, cada um dos artigos da “Declaração dos Homens e do Cidadão”, adotando um tom marcadamente crítico e num apelo à ação, pela tomada de consciência e reivindicação de direitos pelas mulheres. Essa ousadia valeu-lhe a acusação de traição e a condenação à morte na guilhotina, o que veio a acontecer em 1793.
Foi neste contexto que, em Inglaterra, Mary Wollstonecraft lançou em 1792 Uma Vindicação dos Direitos da Mulher, questionando a exclusão das mulheres da Constituição Francesa de 1791 assim como posições políticas que advogavam que as mulheres deveriam receber apenas educação doméstica. Note-se que Wollstonecraft terá começado a escrever o texto na mesma altura em que de Gouges escreveu a declaração, mas a sua “Vindicação” além de ter o mérito de levar o debate além das fronteiras francesas, aprofundou as bases filosófico políticas da defesa da emancipação da mulher.
Tenho me lembrado do “Vindicação” a propósito do debate que enquadra, de forma prejurativa, a defesa da igualdade de direitos no chavão “Ideologia de Género”.
A reivindicação da igualdade de género é tão antiga quanto as democracias modernas e a emergência do movimento iluminista.
Wollstonecraft deu uma dimensão de género ao movimento de ideias que marcou a Europa da sua época. Embora subsistam posições diversas sobre se advogaria um situação de igualdade plena, parece clara a sua crítica a lógica de cristalização das construções sociais em torno da feminilidade e dos papéis sociais que se esperam para cada um dos sexos como um dos elementos cruciais de uma política de afirme os direitos das mulheres. Ora, esse é um dos fundamentosda luta contra a desigualdade de género.


Parece-me estranho cunhar a defesa da igualdade de género como uma “ideologia”, ora sublinhando o seu caráter abstrato, ora sugerindo ambições totalitárias ou ainda que tratar-se-á um “projeto de facção”.
Sendo claro que género tem um quê de abstrato, visto que toca as mentalidades e normas culturais, o tardio reconhecimento das dimensões de género das desigualdades teve efeitos devastadores, bastante palpáveis: quantas mulheres não terão vivido situações de violência doméstica no silêncio, enquanto fazia-se saber que “entre marido e mulher não se mete a colher”.
Também por isso é tão importante a inclusão destas temáticas nas escolas – precisamos que os jovens de hoje, adultos do futuro quebrem com a “tradição” machista que perpetua a violência.
Mais estranho ainda é o argumento das intenções totalitárias. É que estamos a falar de ideias que têm sido minoritárias ao longo dos séculos e as suas defensoras alvo de censura e até de repressão. Quem tem medo de que se fale sobre igualdade de género nas escolas? Em que medida é que “igualdade” pode ser uma ideia inspiradora de totalitarismos?
Daqui resulta a estranheza com que encarei o discurso do Primeiro Ministro Luís Montenegro para libertar a disciplina de cidadania as “amarras a projetos ideológicos ou de facção”.
Há muito que as questões de género deixaram de ser um projeto de facção. Provavelmente essa mudança não é tão antiga quanto o tempo em que viveram de Gauges ou Wollstonecraft, mas é já do século passado o reconhecimento da consistência científica do conceito de género; e da inscrição política da igualdade de género como um princípio basilar das nossas democracias.
Alguns contornos desta polémica fazem lembrar os termos dos debates havidos nos finais do século XVIII. Ao elaborar o manifesto, Wollstonecraft reagia também ao “Relatório sobre a instrução pública” apresentado à Assembleia Nacional por Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord e que constituiu um dos documentos fundadores da educação pública em França. Nesse documento, Talleyrand-Périgord evocava as caraterísticas ditas femininas para justificar a exclusão das mulheres do ensino público:
“A casa paterna é melhor para a educação das mulheres; elas têm menos necessidade de aprender a lidar com os interesses dos outros, do que se habituar a uma vida calma e isolada.”
Wollstonecraft contestou a ideia que às mulheres estaria reservada a esfera da beleza e das emoções, esperando-se a submissão das mulheres aos homens, enquanto a esfera pública estaria reservada aos homens. Defendia algo que hoje facilmente compreendemos que deve ser um elemento basilar de qualquer democracia: as mulheres merecem os mesmos direitos fundamentais atribuídos aos homens.
Claro que hoje em dia poucos advogarão abertamente pela vantagem da educação familiar no ensino das mulheres. A restrição do alcance da educação pública é apresentada pela liberdade educativa em domínios considerados críticos – neste caso, a cidadania, a igualdade de género e, em particular, a educação sexual.
Fará sentido essa restrição?
Eu penso que não. A amplificação de conhecimento nestes domínios em contexto escolar em nada diminui o papel educativo da família. Apenas alarga as possibilidades de aprendizagem, de desenvolvimento pessoal e cívico.

Campanha 16 Dias pelo Fim da Violência contra as Mulheres 2024

Lidia Fernandes

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