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Recordando a Presidência Aberta, no centenário de Mário Soares

Junto-me de novo às devidas homenagens prestadas à memória de Mário Soares, por ocasião do centenário do seu nascimento, evocando o tempo que passou nos Açores, no desempenho das suas funções como Presidente da República.
A Presidência Aberta decorreu de 28 de Maio até 11 de Junho de 1989, culminando com as celebrações do Dia de Portugal, na presença do Corpo Diplomático acreditado no nosso País. Mas era aguardada desde havia quase dois anos. Com efeito, verificando o sucesso de tão feliz iniciativa do Presidente Mário Soares, desloquei-me pessoalmente a Beja, em 1987, para o convidar a instalar nos Açores, temporariamente, em futura oportunidade, a Presidência da República. Com isso pretendia sanar alguns resquícios de período anterior algo conflituoso e aproveitar todo o potencial de divulgação das questões açorianas, que tal estadia certamente iria proporcionar.
Os nossos desentendimentos datavam da fase inicial do regime autonómico democrático, quando se começaram a por de pé as novas instituições, previstas na Constituição de 1976. O Governo da República, presidido por Mário Soares, foi muito renitente em aprovar os diplomas de transferência de competências e serviços, então julgados necessários para o normal funcionamento do Governo Regional. Só perante a ameaça da internacionalização das questões açorianas, e no seguimento de declarações de um alto responsável argelino sobre a inserção dos arquipélagos atlânticos na esfera de influência da Organização da Unidade Africana, é que a atitude de Lisboa mudou, daí decorrendo a realização de uma “ cimeira dos dois governos” – expressão do próprio Primeiro – Ministro – e a aprovação de alguns desses diplomas. Infelizmente, poucos dias depois o II Governo Constitucional caiu…
Quando foi candidato a Presidente da República, Mário Soares não regateou elogios à Autonomia Açoriana, que qualificou mesmo como o florão da jovem democracia portuguesa. Aconteceu, porém, que, nos tempos iniciais do seu mandato presidencial, lhe caíram nas mãos dois assuntos bem complexos respeitantes aos Açores. O primeiro foi a nomeação do novo Ministro da República, que daqui se desejava fosse civil e açoriano, mas o Governo propôs um militar e doutra origem. Logo a seguir foi a revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado por unanimidade e aclamação na Assembleia da República, mas contrariado, em matéria de uso da bandeira açoriana nos edifícios e cerimónias militares, pelos Altos Comandos das Forças Armadas. Em ambos os casos o Presidente da República decidiu contra as posições defendidas pelo Governo Regional, aliás com amplo eco na Parlamento Açoriano e também na opinião pública, daí resultando naturalmente situações de conflito aberto.
Ao aceitar o convite para fazer nos Açores uma Presidência Aberta, Mário Soares deu um claro sinal de estar disposto a virar a página, encetando um novo capítulo no seu relacionamento pessoal e institucional com as nossas instituições democráticas de governo próprio e os respectivos titulares
Das eleições regionais realizadas em Outubro de 1988 o partido do Governo saiu com uma maioria absoluta tangencial. Este resultado foi interpretado como sinal de desgaste e enfraquecimento, causado pelos confrontos com os Órgãos de Soberania nos anos anteriores. Fiquei com a impressão que a locomotiva estava deixando para trás algumas das carruagens… Afinei por isso o discurso político, cunhando a fórmula da “Autonomia Tranquila”. Na intervenção feita no acto de posse do IV Governo Regional elenquei algumas das medidas contidas em tal conceito, uma delas sendo precisamente a realização nos Açores de uma Presidência Aberta.
Os preparativos foram complexos, lentos e difíceis, tal era a tensão que se mantinha entre o Governo Regional e o Ministro da República. Mas enfim lá se acertou o programa e se fixaram as datas. Na véspera do início da estadia presidencial na Região Autónoma dos Açores apelei, através da Rádio e da Televisão, para que o acolhimento popular honrasse as nossas tradições de hospitalidade.
Finalmente raiou o dia da chegada do Presidente Mário Soares à ilha Terceira. Cumpridas as formalidades da celebração nacional do Dia das Forças Armadas, na Base das Lages – outro dos items enunciados como medida de construção de confiança no discurso da Autonomia Tranquila – deu-se início, em Angra do Heroísmo, a um programa intensíssimo e muito variado, que haveria de levar-nos às nove ilhas do Arquipélago.
Foram diversas as homenagens protagonizadas pelo Presidente da República a personalidades açorianas e a factos ocorridos nos Açores. Lembro, sem pretender esgotar a lista, Teófilo Braga, Antero de Quental, Vitorino Nemésio, Francisco de Lacerda, o Cardeal Arcebispo de Boston Dom Humberto Medeiros, os Corte-Reais, Dom Pedro IV e os líderes liberais do Governo Provisório na Terceira, os exilados e presos políticos no Castelo de São João Baptista, no Monte Brasil, os inúmeros açorianos distintos exercendo elevadas funções universitárias, científicas, militares, judiciais e os emigrantes, que aliás motivaram uma urgente visita presidencial, escassas semanas depois, às Comunidades Açorianas da Califórnia, continuação dos Açores no outro lado do Mundo … Mas os grandes festejados dessa viagem triunfal foram, por um lado, o Presidente Mário Soares e, por outro, os próprios Açores e o Povo Açoriano.
Quando chegámos ao Corvo – e ainda a viagem nem ia a meio… – Mário Soares estava já completamente conquistado pela beleza das ilhas e pela cordialidade das suas populações. Foi daí que lançou, dirigindo-se, em mensagem presidencial, a todo o País, um verdadeiro pregão em favor dos Açores e da Autonomia Açoriana e do seu profundo significado nacional.
O périplo continuou, incluindo uma descida no topo do Pico em helicóptero da Força Aérea, por mim sugerida em alternativa à escalada, que Mário Soares julgava conseguir realizar; a travessia de São Jorge para a Praia da Vitória em fragata da Armada; a passagem por quase todos os pontos de interesse histórico, cultural ou apenas turístico em cada uma das ilhas; o contacto com empresários e empresas, tomando o pulso da economia regional; o diálogo com a Universidade, com a Igreja e com inúmeros representantes da sociedade civil; um debate tempestuoso com o Ministro das Obras Públicas sobre o Centro de Controle de Tráfego Aéreo, que o Governo da República pretendia transferir de Santa Maria para Lisboa; os banhos de multidão após o desembarque e a passagem, num enquadramento à moda antiga, de requintado sabor régio, nas Portas da Cidade, em Ponta Delgada e no outro dia pela Rua Direita fora e até aos Paços do Concelho da Ribeira Grande.
Especial destaque merece a sessão solene na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, durante a qual o Presidente do Parlamento Regional e Deputados de todas os partidos políticos nela representados usaram da palavra. E não ficaram atrás as sessões de recepção em cada uma das 19 câmaras municipais, onde o Presidente da República pôde escutar a voz dos representantes dos homens bons dos concelhos, como antigamente se dizia.
É deveras instrutivo reler todos esses discursos para comprovar como, nessa altura, era firme e unânime o compromisso em favor de uma Autonomia ampla e forte, expressão da dignidade do Povo Açoriano!
Com a sua inteligente e profunda intuição de político refinado, Mário Soares captou bem a lição e, confessando-se deslumbrado pelas ilhas e pelo seu povo – que onde o mar acaba o coração começa, verso inspirado de Nemésio, adoptado para título do livro que fez publicar em recordação da Presidência Aberta – não hesitou em proclamar-se, como garante da Constituição, garante pessoal também da Autonomia Constitucional dos Açores.
Uma tal declaração assumia, no rescaldo da chamada “Guerra das Bandeiras”, relevante significado: – era um sinal de confiança, emitido ao mais alto nível da orgânica do Estado Português, do qual legitimamente se podia esperar ajuda eficaz para ultrapassar dificuldades e problemas no relacionamento entre as instituições autonómicas açorianas e o todo nacional!
Por sinal coincidiu com a Presidência Aberta a aprovação, pela Assembleia da República, da lei de revisão constitucional, que viria a ser publicada em Setembro seguinte. Nela algumas das pretensões formuladas para ampliação da Autonomia obtiveram acolhimento, ainda assim muito poucas para que se pudesse dar por encerrado o contencioso autonómico. Mas muitas das questões pendentes no diálogo do Governo Regional com o Governo da República como tal se mantiveram, sem que o peso da magistratura de influência presidencial se conseguisse fazer sentir.
Chego por isso a pensar que entusiasmo de Mário Soares pela Autonomia também tinha os seus limites, determinados por uma certa visão da razão de Estado, e desde logo não alcançava a amplidão por nossa parte preconizada.
Mário Soares reclamava para si a paternidade do conceito de Autonomia Tranquila, o que eu sempre contestei, e discordava da Autonomia Progressiva, que tinha sido a formulação expressa marcando a primeira década da vigência entre nós da Constituição do 25 de Abril. Por mim, nunca considerei os dois conceitos como incompatíveis, mas sim antes complementares. Por outras palavras, os objectivos de afirmação açoriana mantinham-se, mas procurava-se dar-lhes realização de uma forma mais cordata e aceitando em cada fase os compromissos possíveis.
Isso mesmo ficou claro no meu discurso perante o Presidente da República, na altura dos brindes, no banquete realizado no Palácio da Conceição, já quase no final da Presidência Aberta. Afinal o que se pretende é que os Açores deixem de ser vistos e tratados como uma possessão de Portugal, passando a ser considerados simplesmente como Portugal aqui! Sem controles nem interferências, desnecessárias e por vezes até ofensivas.
Que a Autonomia manteve a sua dinâmica progressiva pode comprovar-se pelo conteúdo das revisões constitucionais de 1997 e sobretudo de 2004, cuja lei tive o gosto de assinar, na qualidade de Presidente da Assembleia da República. O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores presentemente em vigor continuou no mesmo sentido. O grande desafio da presente geração e das futuras é provar a eficácia da Autonomia Constitucional – um belíssimo instrumento, um verdadeiro Stradivarius… – para assegurar o progresso dos Açores e a liberdade e dignidade do Povo Açoriano.

João Bosco Mota Amaral*

*(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo
Ortográfico)

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