Jorge Arrimar é um autor que transcende fronteiras dentro da Lusofonia.
Nascido na Chibia, no sul de Angola, com raízes profundas na história e nas gentes de lá, foi forçado a abandonar a sua terra devido à instabilidade política e social que se seguiu à independência de Angola.
Viveu e trabalhou em vários territórios lusófonos, incluindo os Açores, onde lecionou e aprofundou a sua ligação às culturas atlânticas, antes de rumar para Macau, onde dirigiu a Biblioteca Nacional.
Após o período em Macau, estabeleceu-se em Almada. É daí que por agora parte para as suas viagens literárias, históricas e geográficas.
A sua formação académica em História e Ciências Documentais moldou a sua visão crítica do mundo.
O título “Cuéle – O Pássaro Troçador” evoca o cuéle, um pássaro típico do sul de Angola, conhecido pelo seu canto distintivo, que parece troçar do que o rodeia.
No livro, o canto do cuéle surge em momentos chave, assinalando as incoerências e os ciclos da vida e da história.
Jorge Arrimar opta por contar a história, sem justificar ou condenar. Preenche as lacunas com a ficção e evita simplificar os eventos que marcaram o sul de Angola.
No coração da narrativa está o Comendador António José de Almeida, um homem bom, mestiço, comerciante e empreendedor, símbolo do equilíbrio entre raízes africanas ancestrais e influências europeias.
Ele desempenhou um papel crucial no desenvolvimento do sul de Angola, navegando entre culturas e interesses diversos, promovendo harmonia em vez de conflitos.
A sua história é de resistência contínua às adversidades sociais e políticas, mostrando como a coexistência entre culturas distintas pode ser uma força transformadora. Um tema tão atual.
Mais do que um romance histórico, “Cuéle” é um retrato das gentes e culturas do sul de Angola entre os séculos XIX e XX.
Ao recuperar a figura do Comendador, entre outras, como José António Lopes, Igura, Hangalo, Amúli e Nande, Jorge Arrimar devolve a voz a personalidades apagadas da História oficial.
O autor, com a sensibilidade de um etnógrafo e a criatividade de um poeta, recria estas vidas com delicadeza, enquanto os cuéles zombam das falhas humanas.
A obra convida-nos a revisitar narrativas que tomámos como certas, expondo ironias – como o facto de os últimos escravos em Angola serem homens brancos libertados por um próspero comerciante negro.
O Prémio Literário Dst/Angola Camões, recentemente atribuído ao autor, é um testemunho da relevância e qualidade desta obra singular.
Este reconhecimento de Jorge Arrimar na Literatura e Etnografia angolanas destaca o seu papel na preservação e reinterpretação das memórias culturais angolanas.
No seu canto, este “Cuéle” troça das narrativas históricas tradicionais e da nossa perceção do passado.
Ao receber este prémio, Jorge Arrimar resgata memórias perdidas e reafirma a necessidade de um olhar crítico sobre a História, devolvendo verdade e justiça à memória coletiva angolana.
Este campo de batalha simbólico, onde a História continua a ser debatida, é onde Jorge Arrimar se afirma como uma voz indispensável.
Ponta Delgada, 03 de janeiro de 2025.
João Mendes Coelho