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Doutrina autonómica regional

Num registo pessoal de desabafo. Quando na década de 1980 lia Karl Popper ficava maravilhado com o seu saber e honestidade intelectual. Um desses lugares intelectuais consistia no seguinte: ele dizia que tinha relido uma das suas mais antigas obras e que se tinha apaixonado pelo tema ao ponto de continuar a estudá-lo pela vida afora. Compreendia a ideia, mas não conseguia conceber que tal pudesse acontecer: na minha arquitetura de aprendiz imaginava o livro ou a obra como um produto final. Por sinal de sorte ele, noutro lugar e mais tarde, dizia isso mesmo de outro modo: quando esgotamos um assunto científico, podemos descobrir que dali renascem outros subtemas, como filhos ou netos, e assim sucessivamente. Comigo próprio, mais tarde, vim realmente a conceber a sua ideia, sobretudo com o Dicionário das Autonomias publicado em 2014 numa versão digital e em 2023numa versão em papel, melhorada e aumentada.
Ao ler novamente o Dicionário parece que nunca estamos satisfeitos, redescobre-se, reinterpreta-se e fica-se continuamente maravilhado com a permanente abertura da leitura. Desde sempre soube que era e é um projeto inacabado, seja por via das matérias que são dinâmicas e provavelmente inesgotáveis; seja por via da natureza de um dicionário que é sempre incompleto e imperfeito. Na 1.ª versão, por exemplo, achamo-lo demasiado técnico; nesta 2.ª versão, achamo-lo incompleto e ainda demasiado técnico, apesar de o ter duplicado e simplificado.
O Dicionário lista um conjunto alargado de princípios autonómicos, isto é, regras que estão dentro do sistema constitucional da autonomia política, muitos dos quais estão escondidos ou mascarados de confusão. Para dar por eles, para os descobrir e os alisar à compreensão, é uma obra de muitas décadas de investigação. Seria de esperar que essa lista fosse completa. Mas eis que agora redescubro um pormenor. Mas antes tenho de explicar a diferença entre um “princípio” e uma “regra geral”: ainda é válida a ideia antiga (se não nos falha a memória, de Tomás de Aquino), segundo o qual um princípio é algo que tem um início e prolonga-se continuamente ad etern. Já uma regra geral é circunstancial porque constitui uma regra que tanto se pode manter, como pode revogar-se. Tudo isso, bem entendido, num registo de normalidade democrática. Por exemplo: a universalidade é imanente à condição humana porque todos, sem exceção, são reconhecidos como cidadãos ou como iguais perante a lei; já a regra de que se deve interpretar a lei de acordo com um mínimo do seu agregado literário, é regra geral, porque pode atender-se a um costume local (outra regra geral), ou verificar-se que a lei diz a mais ou diz a menos em palavras do que pretende. O princípio da igualdade também é, ao mesmo tempo, uma regra geral: embora tenha a faceta especial de princípio, ela impõe amiúde que tratemos as coisas de acordo com a realidade efetiva, tratando situações idênticas como idênticas e situações desiguais como desiguais. Ou seja, é princípio o tratamento igualitário para todos; mas é regra geral a sua aplicação que tanto pode encaminhar-se para um lado, como para outro, desde que subsista a diferença e que seja adequada ao que se pretende, e que seja justa e proporcional.
Nas entradas do Dicionário sobre princípios, construímos um conjunto deles, nomeadamente os princípios do constitucional autonómico, do constitucional da unidade nacional, da certeza jurídica autonómica, da cooperação administrativa, da cooperação política, da cooperação técnica, da dimensionalidade, da especificidade formal, da fiscalidade autonómica, do destinatário, da imutabilidade estatutária, da materialidade constitucional, do mínimo, do mínimo legalista, da regulação constitucional, institucional ou primazia institucional, da variação. No entanto, na entrada do “Poder Legislativo” encontramos três outros princípios estruturais da autonomia política: do limite, da liberdade e da responsabilidade.
Numa leitura recente perguntei-me o motivo dessa separação; por que motivo na secção dos princípios ali estão em bloco muitos; mas depois, como que inexplicavelmente, encontram-se aqueles três naquela entrada sobre o Poder Legislativo.
A resposta foi instantânea: é que aqueles três princípios não são apenas autonómicos, eles também se aplicam à Assembleia da República, também se aplicam de igual modo ao Estado na criação das leis. O princípio do limite do poder legislativo advém do modelo constitucional de criação das leis, com todas as suas formas e processos; o princípio da liberdade do poder legislativo decorre de que ninguém, sem legitimidade constitucional, pode colocar em causa esse poder criativo adentro dos casos constitucionalmente previstos; e o princípio da responsabilidade decorre das obrigações constitucionais sobre as responsabilidades políticas, a separação de poderes, a universalidade, a igualdade e a constitucionalidade das leis. Ou seja, esse grupo de princípios estão separados – porque, embora não sejam exclusivos para a Região Autónoma, são especiais nesse regime regional.
Daqui sobressaltou, por fim, a verdadeira questão que traduz efetivamente uma novidade no meu pensamento: é que não foi intencional essa separação, ela foi feita no decorrer da organização e escrita do Dicionário. Ao voltar novamente à leitura do Dicionário descobri que ele tinha mais do que escrevi: continha um corpo doutrinal perfeitamente delimitado que poderá constituir um acervo doutrinal da autonomia portuguesa. Quero dizer que escrevi um segundo livro dentro do livro. E agora, pois, descubro que o Dicionário não é apenas um dicionário de autonomia, mas também é, para quem souber dele, um vasto conjunto de doutrina inteira e exclusivamente regional e trabalhada desde há muitos anos nos nossos estudos. E isso levanta outro problema: é que assim já não é adequado que o Dicionário trate disso, porque implica maiores desenvolvimentos; terá de ser outro livro diferente. Mas julgo com toda a certeza, salvo seja a comparação com o prestigiadíssimo filósofo, que não temos as forças, nem sobretudo as condições, que tinha o Sir Popper para criar novos filhos.

Arnaldo Ourique

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