Edit Template

Auto da barca do ambiente e da agricultura

Certo dia, pela altura do Carnaval da ilha Terceira, chegou a Angra do Heroísmo o barqueiro de Gil Vicente, trazendo consigo a missão de levar duas pessoas até um auto infernal. Personagem encarquilhada, experiente nos assuntos da sociedade de classes, muito para lá do original estatuto de Diabo ou de Anjo. Encostou-se, no pátio de Alfândega, ao senhor Vasco da Gama, admirando aquela estátua e questionando a sua natureza. Da última vez que tinha visitado a ilha Terceira, ela ainda não estava ali. E que faria ali Vasco da Gama, quando pouco tinha a ver com a história daquela cidade?
Uma velhinha, que limpava a escadaria da igreja da Misericórdia, viu o senhor esquelético ali parado, a observar o Vasquinho, e aproximou-se para lhe explicar que, de facto, aquele não era mais do que um símbolo de uma promessa quebrada entre Angra e a sua baía. Há muito que as pessoas se tinham voltado de costas para o mar. Agora só restava Vasco da Gama, eternamente preso a terro, espelhando uma urbe sem vocação atlântica.
Mas ainda haveria certamente esperança, pensou o barqueiro de Gil Vicente. Onde há pessoas, há sempre poder e resistência. Nem tudo estaria perdido, garantidamente. Até porque ele tinha ali vindo com a encomenda de levar duas achas para a fogueira do outro lado.
Subindo a rua Direita, o barqueiro avistou um senhor de meia-idade, com um fato escuro, sensaborão, encostado à parede de uma mercearia local, onde se vendiam sementes e produtos agrícolas. Era o senhor da Agricultura, um dos que ele tinha vindo buscar para o auto. Fitaram-se durante uns segundos, enquanto pairava no ar a certeza de que aquele seria o dia do julgamento. Mas a Agricultura revoltou-se desde logo, com gritos e distrações. Um subsídio prometido ali. Uma esmola oferecida acolá. Nem tudo o que correra mal era culpa dele, afirmou repetidamente, enquanto sacudia água do capote, mesmo que não fosse dia de chuva.
O barqueiro quis saber da candidatura aos paços do concelho, em jeito de amnistia e redenção. O senhor da Agricultura irritou-se com o sistema. Bem que queria ajudar a população e ser candidato à salvação, mas achava uma enorme vergonha não poder avançar com a candidatura e manter o cargo de gestão, pois queria ter a certeza que, em caso de derrota, tinha telhado para se abrigar de um eventual furacão. Considerava indecente que o nosso pequeno reino atlântico não fosse capaz de compreender isso.
E, por falar em reduzidos tamanhos, o barqueiro perguntou-lhe pela pequena comunidade da ilha das Flores, abandonada à sua sorte, sem cooperativas ou pessoas capazes de ajudar a defender os seus interesses. O senhor da Agricultura calou-se. Sobre aqueles assuntos, tornava-se sempre incapaz de pronunciar uma palavra de solução.
Eis que surge do outro lado da rua, o outro senhor que o barqueiro viera buscar. De fato claro, idade mais jovial e camisola com publicidade a uma empresa local de venda de produtos não farmacêuticos. O senhor do Ambiente estava ali para ajudar o seu companheiro. Defendeu as Flores, apresentando um longo discurso de quinze horas, dezasseis minutos e dezassete segundos, onde disse tudo e o seu contrário, terminando com uma solução que na verdade já existia muito antes de ter começado o seu trabalho, e que em nada ajudou aquelas gentes.
“Lá te vim salvar a pele outra vez”, disse o senhor do Ambiente ao senhor da Agricultura. O barqueiro observava aquele bailinho sem grande graça, decidindo qualdos dois seria mais merecedor de um auto dos fundos do Inferno. O velho e experiente manejador de Gil Vicente discerniu então o truque que ali se montava perante o seu olhar. O Ambiente defendia a Agricultura, e a Agricultura protegia o Ambiente. Mas o propósito não era ajudar o povo. Era defender os grupos económicos. Não havia cientistas naquela rua, a defender as frases feitas e as sortes de varas daqueles senhores.
Não havia vontade de beber venenos nem de disparar sobre ratos. A única coisa que lhes restava, era a verdade.
O barqueiro proclamou-lhes culpados. Prontos para seguir viagem até ao seu auto.
Ofertou cálices de glifosato provenientes do catálogo de uma empresa local. Dedicou- lhes longos poemas e discursos vicentinos que não nos interessa aqui repetir. Concluiu o barqueiro, acerca daqueles assuntos de cordel, que no Ambiente e na Agricultura, não restavam salvações evidentes ao arquipélago.
Apenas uma esperança, ténue, na sua fé inabalável quanto à vontade popular. É que depois de Gil Vicente o soltar no mundo, o barqueiro tinha-se tornado amigo de Zeca Afonso, e nunca deixara de acreditar na letra da já antiga, mas sempre morena Grândola. Nas palavras daqueles dois senhores é que já não dava para acreditar.
Queimaram-se as Flores, queimaram-se os animais e as estratégias de recuperação de antigas dores. A eles, só lhes restava o Inferno, e o juízo popular.

Alexandra Manes

Edit Template
Notícias Recentes
Câmara da Povoação comemora o Dia dos Avós no Jardim Municipal
Registados 48 acidentes de viação na Região Autónoma dos Açores
Greve dos procuradores do Ministério Público imobilizou tribunais durante três dias
Ano Santo Jubilar na Diocese de Angra marcado pelo Ciclo do Órgão
Detectado foco de Loque Americana na ilha das Flores
Notícia Anterior
Proxima Notícia

Copyright 2023 Diário dos Açores