“Se as populações açorianas souberam resolver este imbróglio através da exigência de um novo sistema de governo para “todos, todos, todos” serem ouvidos e participarem efetivamente no seu futuro – esta autonomia terá solução. Se tudo se mantiver nesse tipo de autonomia centralista e independentista – os povos insulares vão continuar em privação da liberdade e da democracia.”
Antes da democracia implementada com a Constituição de 1976 existiam duas ideias no arquipélago açoriano. Uma era a da independência, e em dois modos diferentes: um modo mais antigo, uma ideia republicana no sentido de que seria possível fazer das ilhas com o continente uma república federativa, ideais provocados nos seus primórdios com a Constituição monárquica de 1822 e efetiva concretização a partir de 1832 e concretizados nos ideais republicanos e que esmoreceram com o Estado Novo; e um modo recente, um desejo sobretudo vincado e antigo em S. Miguel, mas com ramificações na Terceira no período da transição de 1974-1976. A 1.ª ideia, existente nos anteditos modos temporais, era a relativa à sustentação financeira desse desejo: na 1.ª fase, mais antiga, acreditava-se que as ilhas eram sustentáveis por si só, como a exemplo a noção de P.e António Cordeiro que equiparava territórios políticos europeus exclusivamente pelo tamanho, esquecendo, nomeadamente, a natureza arquipelágica e oceânica dos Açores. A2.ª fase, recente, que acreditava na sustentação das ilhas pela sua economia, mas no seu íntimo acreditavam que os EUA, acreditando no seu apoio político, daria o empurrão necessário. Ainda está por estudar porque é necessário o acesso a documentação que só daqui a muitos anos teremos acesso realista; mas existe já a ideia de se considerar que os seus defensores escudavam-se nos EUA para a independência, mas arquitetavam a sustentação do arquipélago através dum único centro de desenvolvimento em S. Miguel, usando as restantes ilhas como território de quintal e subalternidade política, e rebuscando à outra república, a portuguesa, interesses para uma formação à moda antiga de Estado federal (imitando os EUA) e com isso os restantes dividendos, incluindo os gordos benefícios da base das Lajes na Terceira.
Quer-se dizer, portanto, que da história política dos Açores – neste segmento árido e azedo, mas a história é o que é – sobressaem estas duas ideias, a do independentismo e a da sua sustentação financeira.
Os cinquenta anos da autonomia mostram claramente que estas duas ideias foram reconfirmadas como inexequíveis. A “qualidade” da autonomia política constitucional destruíram quaisquer possibilidades de tais ideias e ideais: a autonomia regional, bem inserida no esquadro da República e no seu contexto da União Europeia e mais-a-mais como região ultraperiférica, mostrou a inoperacionalidade de qualquer ideário independentista; e o financiamento da autonomia regional, mostrou categoricamente que a região nunca teve e não tem e parece que nunca terá quaisquer possibilidades de se autogovernar financeiramente.
Essa conclusão reforça o ideário e a ideia da autonomia, e ela surge-nos como uma revelação. Efetivamente, embora encharcados na ressalga de muitos problemas estruturais – má nutrição de metade da população jovem, dívida sempre a crescer e inconsequente e qualidade de vida a piorar, e em último lugar em todos os rankings nacionais e europeus de condições de vida civilizacionais – a autonomia política é um bem precioso para os insulares. Sem reservas, os açorianos sem a autonomia política – pura e simplesmente não teriam futuro, ou pelo menos a imagem que têm dele. Depois de quinhentos anos de escuridão – possuir personalidade jurídica com parlamento e governo, financiamento e capacidade de verbalizar perante o país e não só – é uma obra colossal perante tudo quanto passaram os nossos antepassados.
Ou seja, a autonomia é uma revelação. Mas não são menores as dúvidas. E muito sérias.
Se na 1.ª metade dos cinquenta anos – a autonomia originária e constitucional – impunha essa epifania; já na 2.ª metade, tudo se esmoronou e as dúvidas multiplicam-se.
A autonomia originária e constitucional, que ainda consta da Constituição, impunha o ideário de arquipélago: cada ilha avançaria de acordo com a qualidade de suas gentes e cada uma seria um polo de desenvolvimento específico; de início aproveita-se, desde logo, os três centros históricos e populacionais. Esses três já eram uma boa base, embora, entre eles, qualquer um pudesse desenvolver-se mais em função da qualidade das gentes, e que era já ponto assente que S. Miguel se deslocaria dos restantes dois; mais: que a Terceira também, porque o Faial nunca quis centralidade – talvez por saber que isso teria custos, que os têm, evidentemente. Além destes três centros, cada uma das restantes ilhas iriam paulatinamente crescendo à medidas das suas possibilidades. E era neste registo de solidariedade regional, a extinta harmoniosa açorianidade, que as ilhas se governariam em conjunto. Ora, tudo isso, apesar de ainda “escrito” na Constituição, foi desaparecendo na região: não totalmente na Constituição; mas nas versões dos estatutos políticos da Região e depois concretizado nas leis e sobretudo nas políticas. Ou seja, os cinquenta anos representam grandes dúvidas.
Mas não só. Subsiste uma segunda revelação: os ideários independentistas que acima revimos não foram extintos. Pelo contrário, foram moldados: o que antes era independência passou sendo dependência. Quando em 1975 se concretizou fazer dos Açores o que se tinha feito antes para as regiões ultramarinas (a cópia é tão fiel que até se foi buscar a ideia de interesse específico, justificativo para as assembleias legislativas ultramarinas legislarem, muito embora o ministro do ultramar pudesse mudar e até revogar essas leis regionais) alguma da elite micaelense bateu palmas: se não era possível a independência, ao menos vamo-nos governar sozinhos em autonomia política.
Enquanto o 1.º presidente do governo açoriano conseguiu manter a trela curta, a autonomia política constitucional manteve tal-e-qual o ideal açoriano harmonioso (embora exista quem diga que, pelo contrário, foi uma preparação; mas, pessoalmente, não acreditamos nisso). Quando deixou de o ser, com atrela solta deu-se o pensado: sim à autonomia constitucional, mas num registo central independentista. Em poucos anos foi expurgado do Estatuto Político o harmónico, o interesse específico e os centros de desenvolvimento. É neste ponto que vivemos.
Se as populações açorianas souberam resolver este imbróglio através da exigência de um novo sistema de governo para “todos, todos, todos” serem ouvidos e participarem efetivamente no seu futuro – esta autonomia terá solução. Se tudo se mantiver nesse tipo de autonomia centralista e independentista – os povos insulares vão continuar em privação da liberdade e da democracia.
Arnaldo Ourique