Edit Template

Passagem Noturna de Leonor Sampaio da Silva: Entre a Catástrofe e a Recriação do Culto do Espírito Santo

Quando a ontopoética da ruína e do abismo convoca a esperança

Passagem Noturna, romance inaugural de Leonor Sampaio da Silva, impõe-se como uma obra rara no panorama literário contemporâneo português, porque o estranho surge como um nervo à flor da linguagem, condensando, com mestria rara, o que há de mais íntimo e cósmico na experiência do colapso. Trata-se de um romance insular em todos os sentidos: geográfico, narrativo, psíquico, existencial. Um romance onde o fim do mundo é também o início de uma outra linguagem, mais densa, mais ambígua, mais radicalmente humana.
Atrevo-me a afirmar que Passagem Noturna é um romance de assombração topológica, onde a geografia encarna a instabilidade da experiência humana perante a catástrofe.
O tempo, por sua vez, articula-se num ciclo de sete dias, estrutura que evoca simultaneamente o Génesis e o Apocalipse. A sugestão bíblica não é gratuita, pois a autora constrói uma mito-poética reversa, onde a criação ocorre através da ruína. O dia primeiro não inaugura a luz, mas a treva; o último dia não propicia o descanso, mas a encruzilhada ontológica.
A narrativa avança através de múltiplas vozes, todas orbitando em torno da Menina Sem Sorte Nenhuma, figura cuja fragilidade concentra, paradoxalmente, a força visionária da obra. A sua voz surge para evocar um estado de transfiguração, entre o trauma e a profecia. Aqui, o olhar da criança opera como dispositivo de deslocamento da lógica adulta e racional e convoca-nos para uma leitura sem nos afastarmos da linha que limita o delírio da revelação.
O sinistro infiltra-se, não como artifício, mas como estrutura emocional da narrativa. A cratera, os hóspedes, os objetos, tudo ressoa um excesso de familiaridade que inquieta o leitor à medida que avança na narrativa.
Em termos de linguagem, este sinistro manifesta-se pela constante oscilação de registos, pelo humor que espreita o abismo e pela ternura que se revela através das fendas criadas pelo desespero.
Formalmente, Passagem Noturna é um texto em permanente travessia. Entre o diário e o poema, entre o drama e a memória fragmentada, entre o mito e o realismo afetivo. Essa fluidez é, em si, uma resposta à crise representada, onde a catástrofe abala também a forma.
Um romance escrito a partir das margens e das ruínas do dizer. Uma narrativa em que a infância e o silêncio se aliam para reinventar o sagrado como ferida sanável.
A inovação formal deste romance mistura o diário íntimo, a teatralidade do absurdo e a poética fragmentária. Esta proposta estética serve a ironia, o absurdo, a ternura e a vertigem.
A insularidade está convertida em personagem alegórica, na metáfora do isolamento afetivo, mas também, no segredo fértil guardado pelos habitantes de ilhas. A insularidade não é apenas condição geográfica. É um destino psicológico e simbólico. A ilha, o hotel e a cratera são metonímicas de uma existência cercada pela perda, pela memória, pela impossibilidade de retorno.
Em Passagem Noturna há ecos do escritor, novelista, dramaturgo e poeta inglês William Golding e da escritora brasileira Clarice Lispector. Como Golding, no romance O Senhor das Moscas (1954), Sampaio recorre à figura da criança como símbolo ambíguo da inocência e vítima da violência latente do trauma e da experiência interna. Em Passagem Noturna a criança é observadora, por vezes cúmplice muda do horror, situando-se no limiar entre o sonho, o delírio e o real, assim como em Golding, a infância é uma lente através da qual se revela o colapso do mundo adulto. A influência de Clarice Lispector é mais estilística, filosófica e psíquica do que temática. Sampaio parece herdar de Lispector a atenção obsessiva ao vazio, ao não-dito, ao que pulsa entre as palavras. Como Lispector, Sampaio escreve a partir de uma interioridade que desafia a lógica narrativa tradicional. Ambas buscam o instante, pelo modo como o tempo se dilui na experiência sensível. Também Sampaio escreve o feminino como ausência, vertigem e poder. Este eco lispectoriano surge como força criadora e destruidora. Um território de escavação íntima, poética e filosófica.
Golding e Lispector habitam o romance de Sampaio como presenças subterrâneas que reverberam, ampliando o escopo simbólico e formal da obra. O resultado destas cedências é um texto filtrado por uma sensibilidade profundamente ancorada no Atlântico português e na herança literária dos Açores, embora o romance não reclame explicitamente esse território. Passagem Noturna, à semelhança das obras desses dois grandes génios da literatura universal, oscila entre a brutalidade do real e o mistério da linguagem, entre a ilha literal e a ilha mental, entre o mundo tangível e o interior psíquico humano.
Passagem Noturna é um romance sobre a possibilidade de narrar a perda que, mesmo vacilante e estilhaçada, pode ainda ser lugar de amparo e esperança. A noite a que o título alude não é só a da catástrofe geológica, mas a do espírito, da história, da infância interrompida. É a mesma noite que se afirma no poema Patmos de Friedrich Hölderlin. Perto está Deus e difícil de ser tocado. Mas onde há perigo, cresce também aquilo que salva, sugerindo que nos momentos de maior rico e dificuldade, também surgem as oportunidades de superação e salvação. Esta mensagem de esperança e resiliência sugere que a salvação e a superação emergem do próprio cerne da dificuldade e do perigo.
A grandeza deste romance reside na beleza indelével de convocar, como nos rituais ancestrais das festividades do Divino Espírito Santo, o atlas narrativo de uma criança a imperar sobre um caos passível de transformação através do Culto do Divino Espírito Santo, de tradição açoriana, símbolo abstrato, tecido em diálogos fragmentários reverberados no inconsciente da clareza infantil que se propõe erodir o mundo sem brilho.
Tal como na tradição do Divino se celebra uma realeza invertida, onde o poder é cedido simbolicamente a quem nada possui, também neste romance a voz de maior lucidez emerge não dos adultos, não dos detentores do saber, mas da menina órfã ou, mais precisamente, de uma criança marcada pela ausência dos pais, que é uma condição que transcende a orfandade literal e assume uma dimensão existencial e simbólica, da sem-nome, da que tudo perdeu e que, ainda assim, nomeia. Este gesto de reversão simbólica, de realeza da infância vulnerável, aproxima o romance de uma espiritualidade laica, mas fortemente enraizada no imaginário do Culto do Divino Espírito Santo, nos Açores.
A protagonista de Passagem Noturna é, pois, uma criança-coroada sem coroa visível mas investida do poder de lembrar, de nomear, de sobreviver sem endurecer, tal como no culto da corrente mística medieval ligada ao pensamento do abade Joaquim de Fiore que reveste o sofrimento de beleza ritual e esperança comunitária. Em Passagem Noturna também a dor é elevada à condição de narrativa e a infância, longe de ser apenas fragilidade, torna-se num lugar fecundo para imaginar outra ordem possível. Este paralelo abre caminho a uma leitura ecocrítica, fazendo-nos avançar pelo cosmo literário que explora a relação entre literatura e meio ambiente, analisando como certos textos representam a natureza e como essas representações influenciam a nossa percepção e práticas em relação ao mundo natural e antropológico do romance.
Leonor Sampaio subverte uma das mais antigas tradições da literatura portuguesa e ocidental: a ideia de que é através da Natureza que se acede ao Espírito. Em vez disso, o romance propõe o movimento inverso e mais raro. É através do Espírito que se toca ou pressente a Natureza. A protagonista, marcada por uma vivência sensorial e psíquica intensas, experiencia primeiro o invisível, a perda, o mistério, o sagrado, a ausência e só depois projeta esses sentimentos sobre o mundo natural.
Passagem Noturna não é apenas uma obra sobre o fim, é um auto em louvor do Espírito no meio de ruínas, quando uma criança reencena, no silêncio de um efabulado delírio, o rito poético de onde surge a Natureza, banhada por um espírito comunitário, sacrificial e mítico, não como entidade exterior ao humano, mas como expressão da alma coletiva e íntima de toda a Criação.
A Criança Imperador do Mundo!

Henrique Levy
Poeta e ficcionista

Edit Template
Notícias Recentes
Blue Azores convidado a integrar grupo de trabalho da COP30 para a protecção do oceano
Ilha mais pequena do arquipélago promoveu oração pela paz juntando-se à intenção do Papa
Casas com piscina custam mais 35% em Ponta Delgada
Ordem dos Economistas promove debate sobre Finanças Públicas Regionais
Parque automóvel cresceu 43,4% na última década e já ronda as 190 mil viaturas
Notícia Anterior
Proxima Notícia

Copyright 2023 Diário dos Açores