O “Corporate raiding” é uma expressão utilizada para designar investidores ou consórcios que adquirem participações em empresas com o objectivo principal de extrair valor a curto prazo – frequentemente através da venda de activos, corte de custos operacionais ou liquidação estratégica – sem compromisso com o desenvolvimento sustentado ou com o interesse das comunidades envolvidas.
Num momento em que se anuncia para Setembro, a conclusão da privatização da SATA Internacional – Azores Airlines (S4), é tempo de colocar com serenidade e lucidez, uma questão fundamental: a que tipo de investidor estará a Região prestes a entregar um activo estratégico tão importante para a mobilidade dos açorianos, para a economia regional e para a integridade das contas públicas?
Haverá, porventura, perigo acrescido de vender mal quando se vende sob imposição? Não necessariamente: Uma das obrigações, que decorre da Decisão 2023/1229 da Comissão Europeia, é a alienação da maioria do capital da SATA Internacional. Mas isso não dispensa a Região da responsabilidade de assegurar que o comprador actua com competência, responsabilidade e orientação estratégica de longo prazo.
Vender a uma entidade sem um plano publicamente conhecido, sem compromisso transparente e sem provas dadas quanto à sua capacidade de operacionalizar o futuro da companhia, não acarretará o risco de entregar a SATA Internacional a um investidor cujo interesse se poderá limitar a extrair valor de curto prazo, comprometendo o futuro da mobilidade regional? No caso do consórcio Newtour/MS Aviation (+2), é importante reconhecer que há rostos identificáveis, como Tiago Raiano, Carlos Tavares e Paulo Pereira da Silva, cujos percursos empresariais conferem credibilidade ao projecto. Contudo, ao contrário do que aconteceu com a TAP – em que Carlos Tavares manifestou publicamente interesse e visão estratégica para a companhia – no caso da SATA Internacional, nunca se dignou conceder uma entrevista ou apresentar um plano claro para a S4. Esta assimetria de envolvimento público levanta legítimas dúvidas sobre se a S4 estará a ser tratada como um fim em si mesma, ou apenas como meio instrumental para alcançar outros objectivos estratégicos, eventualmente centrados no continente. E se esse objectivo não se encontrar alinhado com os interesses permanentes dos Açores, o risco político e institucional não poderá ser ignorado. Esta ausência de clareza levanta dúvidas razoáveis no que diz respeito à natureza e profundidade do projecto em causa. Sobretudo quando comparada com a postura de outros candidatos em processos semelhantes, (como o da TAP), onde interessados como o Grupo LH; IAG e Air France/KLM, tornaram públicas as suas intenções, os objectivos estratégicos e as sinergias sectoriais pretendidas, maiormente com respeito ao mercado do Brasil.
A história da aviação europeia e internacional está cheia de exemplos pertinentes de processos de privatização que falharam por falta de compromisso real dos compradores. Casos como o da Swissair, cuja reestruturação hostil culminou em falência, que resultou em complicações sistémicas na economia helvética (uma bênção para a TAP, diga-se de passagem, que se encontrava sob o jugo de um verdadeiro e inusitado ataque terrorista comercial por parte da Swissair, e cuja falência, foi uma libertação!); da Alitalia, alvo de sucessivas tentativas de privatização falhadas com prejuízo para o erário italiano, e que acabou por ser dissolvida, dando lugar à ITA Airways sob forte controlo estatal; ou da Spanair, que colapsou abruptamente após a entrada de capital privado regional sem uma base sólida, provocando o caos nas ligações aéreas internas em Espanha. Poderíamos acrescentar mais exemplos, mas o caso da Malev, é paradigmático: A companhia nacional da Hungria, após privatização parcial e subsequente incapacidade de sustentação financeira, foi liquidada, com impacto directo na conectividade do país e na reputação externa. Estes casos ilustram bem os riscos de entregar operadores públicos a investidores que se apresentam com referências ímpares, mas que acabam por não assegurar um compromisso sustentado, e cujos erros recaem, invariavelmente, sobre os contribuintes e as comunidades locais.
A opacidade que tem envolvido o processo da SATA, incluindo a não publicação atempada das contas, a ausência total de informação atinente, o silêncio como resposta altiva e sobranceira da administração, às questões que legitimamente se lhes levantam, as alterações de pressupostos financeiros, não partilhados em tempo útil com todos os concorrentes, e a indefinição quanto à proposta técnica deste consórcio, são sinais que devem ser analisados com rigor institucional. Acresce a esta equação o facto de Carlos Tavares, uma das figuras centrais do consórcio, surgir agora na imprensa nacional como conselheiro do líder do Partido Socialista. A ligação entre a tentativa de aquisição de um activo estratégico nos Açores e a sua crescente proximidade ao centro do poder político nacional, não sendo ilegítima, exige transparência e reforça a necessidade de escrutínio. É justamente nestes cruzamentos entre negócios públicos e influência privada que os processos devem ser irrepreensíveis. Não se trata de imputar intenções, mas de exigir critérios claros, verificação objectiva e responsabilização futura.
A alienação da SATA Internacional deve respeitar não apenas os compromissos assumidos com Bruxelas, mas também os princípios fundamentais do interesse público. Um verdadeiro parceiro apresenta um plano sólido, identifica a equipa responsável e assume, com transparência, as obrigações perante os trabalhadores, os contribuintes e a Região. A Região, por seu lado, tem o dever de assegurar um processo equitativo, aberto, verificável e conforme com as exigências jurídicas nacionais e comunitárias.
Mais do que a resolução de um problema pontual, está em causa a continuidade do serviço aéreo público para os Açores e a sustentabilidade de um modelo de mobilidade que, com todos os seus desafios, é essencial para a coesão territorial e desenvolvimento económico do arquipélago.
Tal como na vida pública, também na esfera empresarial a transparência não é um entrave à eficiência: é condição de legitimidade. O que se exige ao Governo é que actue com rigor, e o que se reclama aos concorrentes é que se apresentem de igual modo.
Em matéria de futuro colectivo, não basta cumprir: é preciso escolher bem.
Resta o desejo, tão genuíno quanto contido, de que este processo venha – apesar das aparências – a revelar-se uma verdadeira Parceria Estratégica com a Região. Que o tempo venha a revelar um parceiro tão interessado quanto comprometido, tão capaz quanto digno. E que, ultrapassadas as névoas sebastiânicas da incerteza, se reconheça neste processo um acto de afirmação e maturidade institucional, e não uma página menor, esgaratujada à pressa, no livro da nossa Autonomia.
Até lá, e mesmo que possa parecer escusado, manter-nos-emos vigilantes. Não por desconfiança, mas porque há um dever que transcende a oportunidade política: o de velar por aquilo que é comum, com a exigência de quem sabe que não basta confiar no tempo, pois é preciso participar, inspirar e ajudar a moldar o futuro.
Victor Silva Fernandes *
- Comandante jubilado da aviação comercial e Lead Arranger de um consórcio independente interessado na reestruturação da SATA