Edit Template

Mapas Rasgados, Rotas Reinventadas: O colapso de velhas certezas e a cartografiaincerta do futuro global

Outrora, o mundo girava em torno do mito do intercâmbio sem fricções — bens deslizando pelas fronteiras como atoadas, capital livre como nuvens e poder escondido atrás das cortinas de veludo do consenso tecnocrático. Mas todo o feitiço acaba por desgastar-se. Agora, o aço pesa nas mãos de trabalhadores há muito esquecidos, o trigo custa mais do que ouro em casas que outrora alimentavam nações, e o ar não vibra com promessas, mas com rutura. A era da certeza neoliberal está a rachar como gelo antigo, e por essas cissuras marcham os fantasmas do protecionismo, do império e da revolta — liderados não por filósofos ou poetas, mas pelo homem mais barulhento da sala, empunhando tarifas como tochas numa floresta seca. E atrás dele, vemos: a velha ordem em chamas e a pergunta desesperada deixada ao desdém: o que, se é que alguma coisa, crescerá das cinzas?
No ensaio Is Donald Trump Winning the Tariff War?, David Moscrop oferece-nos uma reflexão severa sobre uma transformação global em curso. Longe de ser uma anomalia passageira, o nacionalismo económico de Trump — personificado de forma mais clara no seu uso agressivo de tarifas — está a reestruturar o comércio internacional e a abalar os alicerces da ortodoxia neoliberal. A visão central de Moscrop é ao mesmo tempo inquietante e esclarecedora: embora a estratégia tarifária de Trump possa não representar a morte do neoliberalismo, ela marca o início da sua decadência. Neste crepúsculo incerto, ficamos a perguntar: o que vem a seguir?
O contexto para essa mudança é a desilusão global com uma ordem económica que durou décadas, prometeu prosperidade, mas trouxe precariedade. Desde a década de 1970, o neoliberalismo — definido pelo livre comércio, desregulamentação, fluxos globais de capital e o enfraquecimento da intervenção estatal — dominou o cenário político. Os seus benefícios foram distribuídos de forma desigual; os seus custos, suportados de forma desproporcional pela classe trabalhadora. A desindustrialização esvaziou comunidade atrás de comunidade.
A política externa foi subordinada à lógica do mercado. E a governança democrática foi frequentemente contornada por decretos tecnocráticos. Entra em cena Donald Trump, cujo mercantilismo grosseiro — embora sem coerência, consistência ou compaixão — explora uma raiva legítima. Como escreve Moscrop, “Trump é o coveiro do neoliberalismo — e talvez aquele que os neoliberais merecem”.
Ao destruir acordos comerciais, impor tarifas unilateralmente e exigir negociações bilaterais com outras nações, Trump inverteu a ordem global. Os resultados têm sido caóticos, mas inegáveis: os parceiros comerciais dos EUA alinharam-se para fechar novos acordos, e os nacionalistas económicos da base republicana abandonaram em grande parte sua antiga lealdade à globalização.
A análise de Moscrop é sutil. A guerra tarifária de Trump, argumenta, “teve sucesso” — não em termos económicos racionais, mas em reestruturar o terreno em que se travam as disputas políticas e económicas. Onde antes o consenso global rejeitava o protecionismo de imediato, agora até mesmo os críticos são forçados a lidar com as suas implicações. Isso, sugere Moscrop, é uma prova de que “o consenso neoliberal não é mais hegemónico”. A era da inevitabilidade acabou.
Mas se a guerra de Trump sinaliza o fim de uma era, ela não oferece um plano claro para a próxima. As suas políticas, observa Moscrop, são uma «construção de espelho distorcido» do que alguns na esquerda há muito defendem: um afastamento da globalização liderada pelas empresas e uma aproximação da resiliência económica doméstica. No entanto, o modelo trumpista é desprovido de preocupações sociais ou ecológicas. A proteção do trabalho e do ambiente não fazem parte da visão.
O «America First» de Trump é menos uma estratégia económica do que um sentimento nacionalista — uma reorganização dos vencedores e vencidos dentro de uma lógica de soma zero. Porém, os efeitos em cadeia são reais. O Canadá, tradicionalmente ligado aos Estados Unidos tanto economicamente quanto ideologicamente, está agora a explorar novos alinhamentos com a União Europeia e o Mercosul. A China, sempre oportunista, está a entrar no vácuo deixado pelo unilateralismo americano.
A política comercial de Trump, segundo Philip Cunliffe, da Compact (citado por Moscrop), «matou o sonho europeu» ao forçar a UE a aceitar compras de energia e concessões tarifárias. Os países da NATO foram pressionados a comprar armas americanas e aumentar os gastos com defesa. A curto prazo, os Estados Unidos estão a extrair tributos. A longo prazo, estão a gerar desconfiança.
No entanto, aqui no país americano, as contradições deste realinhamento económico começam a surgir. Os preços estão a subir. A inflação é uma preocupação persistente. Até mesmo bens de consumo muito apreciados — equipamento de videojogos, sapatos, carne — estão a ficar mais caros. Afinal, as tarifas são, como se sabe, impostos, e esses impostos estão a ser repassados diretamente para as famílias americanas. Oitenta por cento dos americanos, observa Moscrop, estão preocupados com o impacto. A resposta de Trump? Culpar o Bureau of Labor Statistics (Departamento de Estatísticas do Trabalho) e demitir a sua diretora por divulgar dados que o deixaram mal.
A estratégia tarifária pode garantir vantagem geopolítica a curto prazo, mas corre o risco de causar instabilidade política a médio e, certamente, a longo prazo. Se os custos continuarem a aumentar, o apoio público pode vacilar. Como escreve Moscrop, “os americanos estão a passar por dificuldades e, no mínimo, estão fartos”. Sem um plano coerente para amenizar o impacto interno ou redistribuir os encargos, o nacionalismo económico de Trump pode entrar em colapso devido às suas próprias contradições.
E, no entanto, apesar da sua incoerência — ou talvez por causa dela —, o trumpismo abriu espaço para algo novo. Moscrop sugere-o ao escrever: “Este pode ser um período em que visões alternativas para as relações económicas — tanto internas quanto externas — possam ter uma oportunidade de romper anos de inércia”. Em outras palavras, o colapso da ortodoxia neoliberal pode finalmente abrir espaço para ideias antes descartadas como utópicas ou obsoletas: investimento público, democracia económica, política industrial centrada na justiça e reconstrução com consciência climática.
O desafio não é apenas criticar o modelo de Trump, mas articular e lutar por um modelo melhor. A esquerda deve recuperar a linguagem da soberania económica sem cair na xenofobia. Deve defender a desglobalização estratégica — repatriando a produção essencial, regulando os fluxos financeiros, protegendo o trabalho e os ecossistemas — simultaneamente, rejeitando o nacionalismo, o militarismo e o favoritismo corporativo que definem a abordagem de Donald Trump.
A análise de Moscrop sublinha o que está em jogo neste momento. As tarifas de Trump não são uma doutrina coerente, mas sim uma rutura. Revelam que o velho mundo está a morrer — e que a luta pelo que o substituirá apenas começou. Se quisermos evitar a descida para uma geopolítica atroz e transacional — um imperialismo do século XXI disfarçado —, temos de construir instituições que liguem a cooperação global à solidariedade e à sustentabilidade, e não à exploração. Por enquanto, vivemos em transição. O sonho de Davos está destruído, mas os pesadelos do império e do colapso ecológico permanecem vívidos. Se este interregno levará à justiça ou à barbárie dependerá da nossa visão coletiva — e da nossa vontade de nos organizarmos em torno da mesma.
A história não sussurra em tempos como estes — antes pelo contrário, grita. E nesse grito, há um apelo. Uma convocação não apenas para sobreviver ao colapso de um sistema, mas para plantar novos sistemas antes que a fumaça se dissipe.
O futuro não será feito em salas de reunião ou por homens fortes com slogans, mas por aqueles que ousam imaginar uma economia enraizada na justiça, que ousam chamar a crise não de caos, mas de encruzilhada. À medida que os ventos do império mudam e o hino neoliberal se dissolve em estática, ficamos na clareira com sementes nas mãos — sementes de solidariedade, de renovação, de esperança. Que possamos plantá-las com sabedoria, enquanto ainda podemos.

Diniz Borges

Obras citadas
Moscrop, David. “Is DonaldTrump Winning the Tariff War?” Jacobin, verão de 2025.
Cunliffe, Philip. “Trump’s Economic Realignment,” Compact Magazine, 2025.

Edit Template
Notícias Recentes
José Manuel Bolieiro exige que Comissão Europeia seja o “primeiro aliado” das RUP
WestJet anuncia nova rota directa Toronto – Ponta Delgada para o Verão 2026
Aeroporto de Ponta Delgada foi o que mais cresceu em movimento de passageiros em 2024
Paulo do Nascimento Cabral organiza congresso para apoiar jovens agricultores
Homem detido em Angra de Heroísmo por pornografia de menores
Notícia Anterior
Proxima Notícia

Copyright 2023 Diário dos Açores