O sistema autonómico permite formatar ideias estruturais do que seja a autonomia política dos Açores. Queremos dizer: com a experiência autonómica de quatro dezenas de anos e a dois anos de distância para completarmos meia centena de século, já é possível traçar um esquadro de tratado.
Um tratado tanto é possível fazê-lo com base apenas nas leis fundamentais e estruturais; assim como é possível construí-lo pela experiência vivida, quer usando o esquadro teórico, quer englobando a legislação, a governação e o funcionamento autonómico. Existem muitos teóricos da autonomia que dominam o esquadro do tratado teórico; mas existem pouquíssimos que tenham a informação para fazer um tratado completo. E apenas existe um único estudioso que tem esse acervo documental organizado e, muito dele, publicado à escala global, coisa possível dada a facilidade da comunicabilidade planetária e quase gratuita.
Não é apenas a decorrência dos anos que permite a construção dum esboço de tratado. Também e sobretudo conta a realização. Mas qualquer realização tem as suas componentes positivas e negativas. Sem reservas, a experiência autonómica é positiva em muitos aspetos, a começar pelo acervo documental legislativo quanto aos Açores: neste momento temos mil trezentos e oitenta e sete decretos legislativos regionais, com uma média de aprovação anual de vinte sete diplomas, sendo a média de custo financeiro unitário na ordem dos oitocentos mil euros. Mas, assim como os aspetos positivos traduzem mais valias para o sistema; do mesmo modo os pontos negativos são essenciais e não apenas relevantes. Às vezes de tão relevantes contribuem muito mais que os positivos. Isso em si mesmo é mau sinal: significa que a autonomia no seu funcionamento traduz uma realidade que não condiz com a democracia de um Estado de direito, menos ainda quando seja um Estado unitário com regiões autónomas, Estado unitário parcialmente regional.
Quer-se dizer: os pontos essenciais dum tratado autonómico, olhando os Açores (e a Madeira) advêm sobretudo de regras político-constitucionais que foram violadas; as quais, na maioria das vezes, são impercetíveis na sociedade, mas que são melhor visitáveis a longo prazo.
Os elementos negativos, portanto, são a trave-mestra dum tratado que se faça hoje sobre a autonomia açoriana. Eis então, em três pontos como ilustração introdutória ao assunto: um, quanto às revisões da Constituição Autonómica; dois, quanto às leis regionais de origem autonómica; e três, quanto ao funcionamento dos governos na administração dessa legislação. Vejamos cada um e em síntese.
Um. As revisões da Constituição Autonómica de 1997 e 2004 feriram seriamente a autonomia insular. Em todo o caso, feriram mais em teoria constitucional e autonómica – porque na prática o ordenamento jurídico, incluindo da União Europeia, traduzem um acervo de tal ordem que resta muito pouco para a Região Autónoma legislar ex novo e em inteira novidade; isso é de fácil compreensão, porque as regras europeias impõem-se ao cidadão europeu e não apenas ao cidadão insular. Deste ponto fazem parte dum tratado autonómico no que respeita à Constituição Autonómica os seguintes princípios, e que neles nos devemos concentrar: a) na qualidade do sistema de governo, com órgãos políticos exclusivamente autonómico-regionais. b) Melhorando as regras democráticas de controlo e intervenção política. c) Dedicação a pormenores de especialidade, como a ideia de oferecer a certas matérias legislativas a necessidade de as aprovar com maioria qualificada (como existe para a Assembleia da República), obrigando os governos, maioritários ou minoritários, a estabelecer, nesse grupo de matérias, continuamente acordos de governação; d) Presença constante de melhorar com objetividade política (e não a subjetividade que, na maioria das vezes, é negativa por insuficiência ou deficiência de conhecimento).
Dois. As leis de origem autonómica empurram para ideias de correção o que é um ponto muito negativo da autonomia insular: a) Necessidade de melhorar leis, quer em termos de técnica legislativa, quer em termos de acessibilidade; b) Necessidade de melhores leis quanto ao funcionamento da administração pública e especialmente nos direitos do trabalho, por via da sistemática desvalorização dos modelos nacionais através de regimes autonómicos de pior qualidade e prejuízo para os insulares; c) Necessidade de monotorização da legislação autonómica e num registo de âmbito nacional e comunitário e internacional; d) Criação em cada departamento regional de um grupo de trabalho multifuncional de compreensão da legislação regional na procura de soluções que, em audições parlamentares, contribuam num registo multidisciplinar.
Três. No funcionamento dos governos na administração dessa legislação: a) Criar um sistema regional autonómico de acesso aos cargos dirigentes intermédios (diretores de serviço e chefes de divisão), depois duma fase transitória que seja apenas possível aceder através de concurso quem, sendo técnico superior da administração pública, possua um curso criado propositadamente para o efeito (com dois segmentos: uma parte geral, e uma parte especial em funções de temas; ideal que seja criado pela Universidade dos Açores no Pólo de Angra do Heroísmo por ser o centro populacional do arquipélago); b) Criação de modelos de compreensão das leis autonómicas através de ações de formação sistémicas e internas, cujo conhecimento horizontal promova melhor compreensão dos problemas com a legislação e com o fito de a simplificar e melhorar a agilidade administrativa; c) Melhorar o sistema dos departamentos quanto à relação política do membro do governo com a própria administração; d) Esquecer (a falsidade do) orçamento participativo, e criar mecanismos de aumentar a autonomia real das autarquias locais.
Não tanto na criação, mas sobretudo na implementação da autonomia açoriana (e madeirense) montamos um sistema corruptivo horizontal em tudo idêntico ao do Estado; embora isso se entenda dado o contexto e a novidade, mas é impensável imaginar que a autonomia avance – se não dermos um grito de liberdade da autonomia para que seja das populações e não dos políticos. Temos de criar uma cultura cívica de que os políticos são meros representantes.
Nota: estes princípios podem ser visitados na obra de Arnaldo Ourique, “Dicionário das autonomias políticas das regiões autónomas portuguesas”, versão em papel ou digital na Amazon.
Arnaldo Ourique