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50 anos de abril em 2024

Pensei seriamente se devia escrever isto, antes do mais por estar na fase impossível de sobreviver, com sanidade, após a morte da minha mulher e companheira de 29 anos. Além do mais ela fazia as revisões dos meus textos e opinava sobre o seu conteúdo. Depois, ainda estou incrédulo pela cegueira dos dois principais partidos a catapultarem a extrema-direita nas recentes eleições regionais e nacionais.Por fim, lembrei-me de 3 ou 4 factos marcantes da minha vida que se sobrepõem ainda a tudo.
De 1967 a 1972 no TUP (Teatro Universitário do Porto) conheci e trabalhei (entre outros) com o Mário Viegas, Zeca Afonso, Mestre José Rodrigues (da terra da minha mãe, Alfândega da Fé) e comecei a ser politicamente ativo. O Mário leu publicamente um Poema meu.Em 1972, o lápis azul da censura cortou mais de 70 páginas do meu livro de poesia (o primeiro) Crónica do Quotidiano Inútil, a que se seguiram mais cinco volumes até aos 50 anos de vida literária em 2022.Em 1973 passei quase seis meses como Aspirante a Oficial-miliciano (subalterno do major Ernesto de Melo Antunes) no RAL-4 em Leiria e soube através dele que algo se cozinhava no seio das Forças Armadas…Extraio do volume 5 de ChrónicAçores:
Longos passeios do Castelo – em frente ao quartel – ao rio Liz a falar e filosofar. Permaneci em Leiria até setº 1973, edei-me bem com o Melo Antunes (mais tarde bem conhecido do povo português) com o qual tive longas conversas e passeios sobre a situação sociopolítica e económica do país, criando amizade profunda e lido alguns dos estudos da mudança que preparava para o futuro, e iriam ocorrer. Não sabíamos quando… ele dizia que era algo para daí a dois ou três anos (no pior cenário, cinco). Falava-se de vida, de filosofia, de aspirações e sonhos. Felizmente vivi o suficiente para ver a maior parte desses sonhos concretizados antes do novo milénio. Rezam as crónicas que sou moderadamente otimista há décadas, baseado no princípio de que as coisas podem sempre ser piores, mas também podem melhorar, e, normalmente, a vida convalesce connosco. Acredito piamente que a sorte se constrói com muito trabalho e esforço e creio que o destino não está previamente traçado. Porventura, estará delineado para a carneirada que não pensa nem se dá ao trabalho de agir. Para os restantes, bípedes pensantes, o destino é feito de altos e baixos que vamos construindo e destruindo ao longo das decisões que tomamos. Dito isto, nunca me arrependi de nenhuma, mesmo as que provaram serem um fracasso total, pois na data em que as tomei decerto me pareceram as melhores. Posteriormente, tal como sempre tentei fazer, exerci o direito de autocrítica e autoavaliação psicológica das minhas ações e – quando o soube ou quando o pude – fiz as correções que entendi necessárias. Nos meus anos mais jovens, entre os 17 e 23 (1967 a 1973), desde que entrei na Faculdade e comecei a ter um interesse ativo e prático na coisa pública e política a vida deixou de ter duas tonalidades (o branco e preto) e adquiriu centenas de tonalidades de cinzento.
Nessa época qualquer jovem vivia com dois dilemas (caso fosse um ser pensante e havia alguns naqueles tempos). Um, era a espada de Dâmocles da malfadada tropa (o exército colonial português que decepava vidas e esperanças dos jovens ao enviá-los para a guerra colonial que ninguém queria nem entendia), a outra era o facto de não pertencermos à Europa, nem ao mundo, na política do “orgulhosamente sós” a que a ditadura salazarenta se agarrava. Mas havia esperança, a guerra colonial acabaria, tal como a do Vietname e a democracia haveria de chegar como chegou à Europa após a segunda grande guerra.
Mas jamais esquecerei o que era viver sem liberdade. Antes do 25 de abril (em Portugal) havia uma coisa chamada lápis azul, ou censura, que em 1972 me cortou 70 páginas a um livrinho de poemas adolescentes que publiquei só com cerca de trinta páginas…O resto é história, o 25 de abril trouxe a liberdade de pensamento e de expressão e muita água correu sob as pontes mas, hoje, sou confrontado por uma sociedade mais desigual do que nunca, de falsa fluência consumista.
No que conseguíamos ler e ouvir queríamos a liberdade do Woodstock americano com música das rádios pirata britânicas, das manifs de estudantes de Paris em 68-69 (e posteriores), em vez de viver sob “brandos costumes, no jardim à beira-mar plantado” que me obrigaram a uma multa de 2$50 (dois escudos e cinquenta avos = 0,0125€) por andar descalço no acesso à praia …ou outra (creio que 250$00=1,25€) por não ter licença de porte de “arma” (neste caso, um isqueiro). Alguns colegas eram “bufos” (não só da PIDE) e ao denunciarem o meu uso de isqueiro sem licença ganhavam 50% da receita…
Hoje ainda tenho saudades de Timor, da Austrália, de Bragança. Do meu amor súbito (após 2005) e suicida pelo Faial, Pico e outras ilhas açorianas. Tão pronto, a realidade me confronta com a certeza de estar aqui preso e amarrado para sempre, por vontade própria. Dificilmente sairei deste buraco, bem verde e bonito é verdade. É bonito. E que mais? É bonito, mas tão deserto como o Saara. Falta-me gente com quem dialogar a nível intelectual, falta-me um Melo Antunes com quem trocar sonhos e imagens do futuro melhor para o país. Falta-me uma tertúlia, um Cenáculo onde possa falar e ouvir, trocar sonhos e discutir opções de vida (nem mesmo os nossos Colóquios da Lusofonia são talhados para tal).O meu idealismo poético irá morrer comigo. Sozinho, silente. Estes mutismos enormes, solilóquios, que ora partilho comigo mesmo, estão a tornar-me cada vez mais árido. A sensatez reitera que os silêncios não são de hoje. Vão sempre desaguar nas feridas por sarar. Cicatrizes por curar. Estigmas. Dentro e fora do SMO. Mas já fiz o último exorcismo, a última catarse em 2019 e esperava, finalmente, ser livre, se bem que envelhecido, a partir daí. Com cicatrizes mas sem estigmas, apenas lembranças, focando-me apenas nas boas e varrendo as más que tanto me consumiram. E consegui-o até janeiro (2024) quando a minha companheira cúmplice se mudou para outra dimensão deixando-me só neste mundo que não entendo. Escravo sim, mas nunca escravizado, ddisse, em tempos de desabafo, numa das múltiplas tentativas de catarse. Equacionava constantemente o que fizera, onde estivera, como procedera. Tentava descortinar melhores meios de proceder em situações semelhantes. Insistia na minha introspeção insana, mas terapêutica. Quiçá hedonista, destinada apenas a evitar repetir o sofrimento de outras eras. E consegui-o até janeiro (2024) quando a minha companheira cúmplice se mudou para outra dimensão deixando-me só neste mundo que não entendo. Escravo sim, mas nunca escravizado, ddisse, em tempos de desabafo, numa das múltiplas tentativas de catarse. Equacionava constantemente o que fizera, onde estivera, como procedera. Tentava descortinar melhores meios de proceder em situações semelhantes. Insistia na minha introspeção insana, mas terapêutica. Quiçá hedonista, destinada apenas a evitar repetir o sofrimento de outras eras.
Depois foi o terror do 25 de abril em Timor (onde nunca chegou). Estive quase a ser deportado para Moçambique (com mais uns tantos) por ser progressista à frente do jornal local “A Voz de Timor”…
Infelizmente, os efémeros Governos Portugueses, no instável período que se seguiu à Revolução de abril, não se opuseram firmemente, como deviam, às ambições da Indonésia. Incapazes de avaliar ou entender as realidades culturais, económicas e políticas de Timor-Leste, limitaram-se a defender só o direito à autodeterminação. Apregoavam que o povo do território deve “escolher o seu destino, sem opor objeções à integração na Indonésia se essa for a sua vontade livremente expressa,” cometendo um erro bem mais trágico do que se podia prever. A Indonésia avançou com o plano de anexação, com o apoio da Austrália, a cumplicidade do mundo ocidental e dos EUA em particular, e uma muito ténue oposição de Lisboa. O primeiro passo é a desestabilização do território, para o qual o presidente Suharto dá ‘luz verde’ em outº 1974, na ‘Operasi Komodo’ dos Generais Benny Murdani, Yoga Sugama, e Coronel Sugiyanto que incluía o recrutamento de agentes de Timor-Leste, propaganda falsa pelas Rádio Kupang e Rádio Atambua (na metade indonésia da ilha) disseminada pela agência noticiosa oficial ANTARA e reportagens alarmistas sobre a situação em Timor, além do aliciamento dos líderes políticos de Timor, com promessas e ofertas (mais tarde, pressões) e a radicalização dos partidos locais através de agentes indonésios infiltrados. A segunda fase (‘Operasi Komodo’) no começo de 1975, inclui a preparação da invasão quando é já evidente que há uma rejeição quase total timorense do projeto integracionista. O General Benny Murdani é o principal arquiteto da invasão. Em 18 fevº 1975 um simulacro em Lampung, Sumatra, criava o cenário para a operação em Timor, mas o exercício foi um fracasso total e atrasou a invasão. O delegado do M.F.A. em Timor, Major Metello parte em visita oficial a Portugal após dois meses de luta acérrima contra o Encarregado do Governo, Níveo Herdade.

A situação nos escalões superiores da hierarquia era de confusão e tensão. A cúpula militar viu vários oficiais desterrados para fora de Timor por, alegadamente, terem tomado parte num abortado mini-movimento para depor o Encarregado do Governo. Dentre eles um Tenente-coronel, Capitães, um Juiz do Tribunal e oficiais milicianos, 25 pessoas. Fora enorme esta depuração em tão reduzida comunidade. Eu saí deste lote de deportados após escrever cartas ao Major Melo Antunes, com quem trabalhara anteriormente, a dar-lhe conta da situação que se vivia em Timor. As cartas indicavam que, além das que seriam enviadas pelo correio militar, sujeitas a censura, iria enviar cópias por meios seguros através da Austrália e da Indonésia. Assim fiz ao confiar cópias a “hippies” que faziam de Díli o trampolim para chegarem ao último paraíso na terra, que Bali era então. Essas cartas cheias de descrições sobre tudo o que se passava (e provavelmente não era conhecido em Lisboa), podem ter sido a razão de eu não ter sido incluído naquele grupo, como queria Níveo Herdade, de acordo com documento secreto posteriormente revelado na Comissão de Descolonização.
O documento, chegou à minha posse já no séc. XXI, e no qual constato que fui, injustamente, vilipendiado pelo Ten-Cor. Níveo Herdade em 27/9/1976 na Comissão de Análise e Esclarecimento do Processo de Descolonização de Timor, da Presidência do Conselho de Ministros (Relatórios da Descolonização de Timor: Relatório da Comissão de Análise e Esclarecimento do Processo de Descolonização de Timor.) O material foi-me gentilmente enviado pelo General José Alberto Morais da Silva(1941-2014), ex-chefe do Estado-Maior da Força Aérea. Ligado ao “grupo dos nove”, exerceu o cargo até 9 janº 1977, tendo, no seu mandato, enfrentado o golpe militar do 25 novº 1975. Em 2000, escreveu com o coronel Manuel (Amaro) Bernardo, o livro Timor, abandono e tragédia, ed. Prefácio, no qual usou extratos do meu livro Timor-Leste o dossier secreto 1973-1975. O meu 25 de abril descrevi-o então assim (e Ramos Horta confirmou-o no Expresso em dezº 2015):
Quando a Revolução dos Cravos aconteceu houve quem recebesse a notícia via telefone. Depois, era uma questão de perder tempo na rádio de ondas curtas. Era hora de jantar e eu estava de Oficial (Ajudante) de Dia no Quartel-general. O idoso Oficial de Dia já estava há muito a olhar para o umbigo, depois da sua rodada habitual (vinho “Periquita” ou outro). Toni Belo, operador da Telecom, Rádio Marconi, ligou para o Quartel-General a dizer-me que ia ter uma chamada telefónica uma hora depois. Chamei o condutor de serviço, mandei-o ligar o Jeep e passados minutos estava em Díli, ansiosamente esperando ‘a chamada’. Pressenti tratar-se de algo muito importante. Acordara com a família que só haveria telefonemas em emergências. Há muito que confirmara que toda a correspondência era sujeita a censura prévia e as chamadas telefónicas gravadas. Então, ouvi quase sem acreditar: Era a REVOLUÇÃO. Embora Timor não dispusesse de telex, desde o ano anterior dispunha de contactos radiotelefónicos com o mundo exterior. Sem perder tempo, pedi ao condutor para passar por casa nos apartamentos da SOTA(Largo de Lecidere), onde comunico aos colegas de habitação (o cirurgião Carlos Prata Dias da Costa e o Eng.º Proença de Oliveira, subchefe dos Serviços de Agricultura) o que ouvira. Pedi-lhes o máximo sigilo, ligo o rádio em ondas curtas e regresso ao Q.G. (Quartel-General) onde anoto que nada havia a assinalar da ‘ronda’ pela cidade. Durante o resto da noite, escuto avidamente os noticiários da BBC, Rádio Austrália e uma série de emissoras (ouvi a Rádio Paquistão, pela primeira vez). Na manhã seguinte, o camarada Freitas, que me ia render, pergunta se havia novidades de Portugal. Sem confiar em ninguém, depois do que se passara com a controvérsia no jornal, respondi-lhe: “Nada, que esperavas?” Os dias que se seguem são caóticos, com todos os rumores a circular e um generalizado sentimento de incredulidade pelos acontecimentos. Os dias passam, e o oportunismo camaleónico é avassalador. Do dia para a noite todos são revolucionários e democratas de nascença. A demissão do Governador Aldeia demora. Torna-se necessária depois do discurso em que, de forma obstinada, se opunha ao novo regime político. Começam a tomar vulto os rumores de que o capitão-tenente Leiria Pinto, Comandante da Defesa Naval, é o nomeado pela Junta. Estes boatos confundem muita gente, pois Leiria Pinto era considerado como tendo ideias extremamente conservadoras. Ao mesmo tempo, há quem afirme que o Chefe de Estado-Maior, Major Arnao Metello, sombrio oficial de carreira, é o homem de confiança da Junta de Salvação Nacional. Metello é conhecido pela sua falta de decisão e falta de garra em tudo o que se reportava à ação colonial. A oposição à continuação do coronel Aldeia no poder cresce de dia para dia. Ameaça tornar-se numa bola de neve, com os militares definitivamente divididos entre os progressistas – maioria de oficiais milicianos, furriéis e sargentos – e a velha guarda dos oficiais de carreira.
Entretanto em Portugal, o povo anda excitado com a liberdade acabada de aprender. Sobem os barómetros da esperança depois de 48 anos de obscurantismo. A situação começa a clarificar-se em maio, embora nem todos os decretos aprovados em Lisboa se tornem extensivos a Díli. O regime caiu porque estava tão podre que estava incapacitado de suster qualquer ataque. A celebrada vitória vem estampada em todos os jornais e revistas que chegam a Timor, mas de uma certa forma, parece estar a anos-luz. Depois do 25 de abril, comecei a publicar artigos que o Comando Militar e, em especial o CEM (Chefe do Estado-Maior Arnao Metello) queriam evitar e me mandava chamar quase todas as manhãs no velho Volkswagen do Estado-Maior. Nessa rotina (prolongou-se por bastante tempo e trouxe consequências ao meu serviço militar) lá tinha de explicar porque publicara artigos censurados e considerado material proibido. Uma verdadeira caça ou o jogo do gato e do rato.
Ramos Horta viu assim o 25 de abril segundo entrevista dada ao Expresso em 28.11.2015:

Chrys Chrystello*

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