Corria o ano de 2013. Portugal vivia tempos desesperantes, apertado pelo garrote da Troika e asfixiado pelos passos mais troikistas de um governo impositivo. Numa semana daquele ano, foi noticiado um alegado caso de violência doméstica, que nunca ficou bem provado ou desmentido. O jornal O Crime deu à luz uma série de acusações sobre o então primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, que ainda hoje não se sabe se foram ou não encomendadas.
Sabemos, todavia, que naquele tempo as pessoas suspiraram e não quiseram acreditar que tal pessoa fosse capaz disso. Com todos os defeitos que algumas pessoas lhe reconheciam, Passos Coelho era visto como um homem de fibra moral, e, portanto, não se colocava a hipótese de ter levantado uma mão para magoar qualquer esposa ou companheira de vida. Passaram mais de dez anos desde o episódio caricato, que acabou esquecido pela neblina do tempo. Coelho deixou de ser primeiro-ministro, deixou os holofotes e, a certa altura, pareceu estar reformado da vida política.
Não sabemos se foi uma coincidência infeliz, ou uma propositada ação concertada. O que sabemos é que, alguns dias depois da eleição de cinquenta deputados para o partido da extrema-direita nacional, Passos Coelho voltou a público para fazer a apresentação de um livro de propaganda ideológica digno de Marcelo. Neste caso, de Marcelo Caetano, ainda que se possa inferir que Rebelo de Sousa também concorde com muito do que o tal livro afirma.
Identidade e Família é o título de uma obra que mistura comunismo, homossexualidade, interrupção voluntária da gravidez, donas de casa e muitas outras coisas que tal. É um delirante ensaio de conservadorismo, reflexo de um mundo que vive agarrado às publicações chalupas de redes sociais, promovido por algumas das mais bafientas figuras do salazarismo. Perdão. Do passismo.
Passos apresentou a obra e apareceu ombreado com André Ventura, que defendeu como sendo uma solução pragmática para o futuro da direita em Portugal. Essa postura só surpreendeu quem seletivamente decidiu esquecer que a rampa de lançamento do partido de Ventura foi precisamente Pedro Passos Coelho. Dias depois, o antigo primeiro-ministro veio criticar o seu antigo número dois, Paulo Portas, e lançar suspeitas de fraqueza para cima do governo do atual primeiro-ministro e antigo discípulo do passismo, Luís Montenegro.
Este é o mês da Liberdade. Passaram-se cinquenta anos desde a madrugada que todos esperávamos. Cinco décadas desde que Natália Correia chegou a casa naquela noite escura e recebeu uma chamada que mudou o nosso destino. A mesma Natália, que do seu Botequim ajudou o relacionamento de Sá Carneiro com Snu Abecassis, à revelia da esposa dele e dos seus amigos conservadores. Sá Carneiro, figura idolatrada pelo mesmo partido social-democrata que deu à luz o obscurantismo que Coelho agora nos vende. Que diria aquele casal, que floresceu na escuridão do bar, à revelia do tradicionalismo, ao ler a obra que Coelho promove?
Da Identidade e da Família, Coelho lançou-se ao ataque. Deu a mão à extrema-direita, mas manteve a sua postura alaranjada, para granjear os dois lados daquela maçã podre e galvanizar o país no lançamento da sua candidatura a Belém. É evidente que Coelho quer ser presidente de um país onde Ventura seja primeiro-ministro e, a julgar por sondagens recentes, onde mais de metade dos portugueses nem se importe de ficar sem eleições, desde que tenha um líder forte.
Mas voltemos ao livro e ao seu conteúdo. A defesa da chamada família tradicional por aquela obra de ideologia do género masculino, passa pelo branqueamento da narrativa e dos dados. Durante a discussão da mesma, falou-se de violência doméstica, alegando-se que a mulher que apanha e não reclama é porque gosta. Falou-se do papel da senhora, recatada e no lar, enquanto o homem pode sair para apanhar uma bebedeira, arranjar três ou quatro amantes e voltar para casa, com batom na gravata, e sem barulho da parte dela. É essa a família que a extrema-direita, de Ventura, mas também de Passos Coelho, endeusa. É nesse agregado familiar que se reveem, como senhores de um lar onde são imperadores. Também Trump, que Ventura e Coelho adoram, está agora a ser julgado pelo horrendo episódio em que alegadamente dormiu com uma modelo da Playboy enquanto a sua atual esposa estava no hospital a dar à luz ao filho mais novo.
É esse o país que todos esses homens desejam. Com mulheres caladinhas e subservientes. Cabe a todas nós levantar a mão. Repetir a estalada na cara deles. Uma e outra vez. Até perceberem que a nossa identidade, a nossa família e a nossa alma não é deles. É nossa! E eles não passarão!
25 de abril, sempre!
Alexandra Manes