Quando me solicitaram um texto sobre o 25 de Abril, achei que estavam a pedir que me despisse publicamente para revelar alguns dos episódios mais poéticos da minha, já longa vida, em democracia. Nasci no seio de uma família de “democratas-fascistas” pobres. E passo a explicar o enigma, para contextualização da resenha. Estava eu longe de nascer e, em 1917, já o meu tio-avô José de Freitas Pimentel completava medicina em Lisboa, tendo chegado às Flores com intenção de abrir consultório na vila das Lajes. Foi impedido de o fazer por razões políticas (o meu tio procurava já os trilhos da democracia) o que provocou um levantamento popular a seu favor, que não surtiu efeito porque, apesar de grato à população, confessou que nunca aceitaria um lugar por pressão popular. Partiu, assim, para a Horta onde voltou a debater-se com obstáculos políticos. A defesa dos pobres e a sua intransigência na ajuda aos mais desfavorecidos não eram bem aceites. Por esta razão, teve que dar aulas para complementar o exercício da medicina, que sempre utilizou como forma de servir os outros. Foi também por ser uma alma grande e generosa que, nos últimos dias de Dezembro de 1919, aceitou ir para o Pico assistir a uns casos de peste, serviço que outros médicos tinham recusado. Tratava-se da “peste pneumónica” como variante da “peste bubónica” altamente contagiosa e grave. Durante dias, trabalhou incessantemente e sem grandes meios, até que, no decurso da convulsão hemorrágica de José Macedo, seu enfermeiro assistente, foi atingido na cara pelo vírus. Quando teve consciência da iminência da sua morte, isolou-se numa casa desabitada, para morrer sozinho o que, só não aconteceu, porque a senhora D. Maria do Céu Duarte, idosa benemérita e pessoa de imensa bondade, quis ficar do seu lado para o apoiar. No dia 1 de Janeiro de 1920, faleceu ao lado da amiga e companheira dos últimos dias de vida, vindo ela a falecer também, oito dias depois.
Na ilha das Flores, uma pequena parcela de terra, rodeada de insularidade por todos os lados, querer ser médico quando se era agricultor, era já ser portador de um código genético de grande robustez. Médico e mártir, o tio José sempre fez parte da minha memória afectiva mais pura e ainda hoje tenho uma pena imensa de não o ter conhecido. Entra em cena o segundo filho: António de Freitas Pimentel que, como forma de homenagear o irmão, segue também medicina.. O tio António militou na Partido Republicano Democrático, seguindo assim as peugadas de seu irmão José, tendo colaborado na “Seara Nova” e convivido com homens de oposição à ditadura, como António Sérgio e outros democratas republicanos. Em 1930, casou-se com uma médica e vieram juntos para a ilha do Faial exercer medicina.
Começa aqui a minha relação com a política. Vivíamos nas Flores e quando algum florentino adoecia, ia ao Faial, como ainda hoje se vai, à procura de soluções. O meu tio, tinha uma casa muito grande e adorava receber a família. Ficávamos lá em casa, onde a mesa tinha sempre lugar para mais um e a solução clínica para as doenças.
O tio gostava de passear a pé na cidade e eu adorava ir com ele, toda vaidosa, porque o achava muito bonito, cheirava bem e era muito amoroso com as pessoas. A casa tinha um cheiro que nunca esqueci; a fruta madura, a pão fresco, a amor, a reconhecimento e gratidão. Foi lá em casa que aprendi a comer com os talheres correctos, a limpar a boca antes de beber a água e a estar calada quando não percebia do que se estava a falar (essa parte, penso que esqueci com o tempo). O meu tio escolheu, para presidentes da Câmara das Lajes, o meu pai e o meu tio José que se sucederam até ao 25 de Abril. Quando cá vinham Ministros ou outras individualidades era sempre eu que ia oferecer os ramos de flores e dizer poemas. Em troca, era também eu quem recebia os beijinhos e as carícias rápidas dos “fascistas” que eu não conhecia.
Estudei com muitas dificuldades porque só o meu pai é que trabalhava e procurou que estivéssemos sempre o mais perto possível para evitar despesas de deslocações. Como éramos interessados, fomos aprendendo bem e sempre. A minha mãe era uma explicadora exigente e o meu pai estava sempre a chamar a minha atenção para a necessidade de ser independente, traduzida numa frase que nunca esqueço.
- Vou dar-te aquilo que posso, para que tenhas independência económica e não precises de nenhum “marmanjo para te sustentar. A seguir, podes até coleccionar cursos, mas à tua custa.
O Hélio foi o primeiro a querer trabalhar, ainda no sexto ano. O meu pai contava sempre, que lhe ofereceu uma caneta Parker e, no mesmo dia, colocou-o a trabalhar na secretaria da Câmara Municipal das Lajes. O meu irmão José tinha o destino traçado e foi para medicina honrar a memória do tio José, herói e já morto. Enfrentou muitas dificuldades mas era também generoso, sensível e muito inteligente, para além de muito poupado. A mim, restou-me ser professora. Não havia possibilidades para mais. Tinha no Faial os tios, mas fui viver para casa da D. Albertina Andrade que recebia em casa muitos jovens, sobretudo do Pico, sua terra Natal.
Eu estava proibida de namorar enquanto estudasse. Tinha a ameaça de um regresso compulsivo a casa, caso isso acontecesse. Aos 18 anos, era professora e vim para as Flores trabalhar. No dia 25 de Abril de 1974, estava na Escola da Fajãzinha. Saí de casa cedo e, na altura, ouvia-se mal o rádio. À hora de almoço, fui a casa do amigo João Gomes para almoçar. A D. Maria do Céu recebeu, com algum alarme, a notícia de um “golpe de Estado” e da prisão de Marcelo Caetano. Pensei que estavam todos a delirar. Não dando grande importância ao facto, voltei para a escola e trabalhei até às três horas. O meu pai foi buscar-me, como de costume. Quando entrei no caso, ele disse-me: «O Regime caiu!» Até hoje, nunca me perguntei se ele sabia do que estava a falar. Quando cheguei a casa, a minha mãe e a tia Maria do Coração estavam de ouvido colado ao Rádio, porque os pequenos estavam na guerra em Angola e elas estavam na dúvida se a guerra tinha acabado ou ia começar uma nova. Os dias seguintes foram de muita confusão. Dentro de mim, ruíam ilusões e partiam-se como espelhos algumas das imagens mais bonitas da minha vida. O pequeno mundo onde eu vivera estava a desaparecer e eu não conseguia saber porquê. O meu pai tinha sido sempre um homem bom, o tio também. Então porque arrancaram a placa com o nome do tio que estava pregada na casa onde ele vivia? E porque é que isso foi feito por pessoas que o tio ajudara a estudar, a quem dera tantas oportunidades? Eu não entendia a liberdade daquela forma. Eu sempre achei que o meu tio era o homem mais livre do mundo, justamente porque era generoso, reconhecia toda a gente humilde da ilha, onde ele próprio vivera em humildade. Tudo quanto aconteceu a partir daí foi muito complicado para mim. Entrei em conflito com a escola que, entretanto, me estavam a impor. Comecei a ter dificuldades em ensinar, receio de não estar a fazer bem. Foi a fase em que coloquei em causa toda a minha vida, todos os meus valores e tudo o que aprendera. Tinha medo de sair de casa, de grandes grupos, tinha pesadelos e suores frios quando via muita gente. Comecei a pensar como devia comportar-me para ser democrata e não ser esmagada pelas pessoas que, de um dia para o outro, tinham mudado tanto e queriam mudar a minha vida. Tive a sensação que era obrigatório estar na política para viver em democracia. E eu queria ser democrata! Ou a bem ou à força! Nas primeiras eleições livres, votei no MRPP, partido encabeçado por um amigo meu que eu considerava inteligente. Se ele achava que era bom, porque não seguir-lhe as pisadas?
Numa das vezes em que fui a Lisboa, mantive contacto com colegas de lá. Foi aí que comprei centenas de livros. Tudo o que saía de novo, eu comprava. Tentava perceber a diferença entre fascismo e democracia e, dentro da democracia, a diferença entre direita e esquerda. Não foi fácil. A produção literária da época, atingiu volumes nunca dantes imaginados e, no meio daquilo tudo, mais de 50% era lixo ideológico ou frustração de esquerda. Nunca mais me esqueço do Itau, da linguagem de uma esquerda snob dos filhos dos ricos, das cantinas de macrobiótica na faculdade, do complexo de Édipo e outras coisas que passaram a fazer parte do nosso dicionário de vícios politicamente correctos. Apareceram milhares de palavras “novas”, de clichés e slogans. E eu pasmava quando percebia que quase todas essas palavras estavam no dicionário. Eu é que não as conhecera antes.
Em 1984 fui eleita deputada ao Parlamento Açoriano pelo PPD/PSD. E foi aí que começaram as desilusões a sério. Comecei por ficar impressionada com o facto de perceber que se faziam muitas reuniões partidárias sem conclusões, que se passavam muitas horas a falar de coisas que não tinham nada a ver com o povo nem com o seu bem-estar. Pior do que isso, foi ter percebido que tudo funcionava através de conluios, com as pessoas que tinham possibilidades de angariar mais votos por serem muito conhecidas ou, por dominarem muita gente. Nessa altura, voltei a questionar tudo e a ter um dos meus “ataques existenciais”. No fim do mandato, entreguei o cartão de militante num gesto que significava que não tinha entendido nada. Não me orgulho de ter sido intempestiva, mas também nada fiz que mereça destaque. Sabia muito pouco e não tive quem me matasse a curiosidade.
Estou feliz com o 25 de Abril porque reconheço que a democracia em Portugal abriu muitas portas, das quais a liberdade de expressão foi, para mim, a mais importante. A abertura das nossas fronteiras e a nossa incursão na Europa comunitária foram mais-valias fabulosas para todos os portugueses. Quando Portugal entrou na Comunidade Económica Europeia – estava eu na Assembleia Regional – lembro-me da emoção desse dia, como me lembro de alguns outros bons momentos que vivi na política quando sentia que Portugal e os Açores estavam a crescer.
A verdade, porém, é que continuo à procura da “democracia” que faça todos felizes e do partido que encontre uma forma de fazer o Mundo mais feliz. Considero que, aos 70 anos, me posso orgulhar das minhas vivências políticas e da imensa experiência que colhi nas mais diversas sedes por onde passei: o jornalismo, o sindicalismo, a escrita e o ensino. Todas elas foram formas de conhecer outros tantos mundos, todos eles muito diferentes na forma de encarar as questões da política e da democracia. Esta variedade de mundos, onde me inseri de minha própria e livre vontade, mostraram-me um outro lado da política, que hoje conheço e domino, e aumentaram a minha capacidade crítica que, nos tempos que correm, é tão importante como o conhecimento. Sinto que evoluí, mas não mudei. Dorme em mim uma sonhadora, coabita comigo uma democrata desentendida com muitas coisas, tenho hibernados muitos sonhos de igualdade, que não cabem na estreiteza dos horizontes de nenhuma esquerda que eu conheça, e gosto de histórias de reis e de rainhas porque em cada mulher romântica há, com certeza, uma potencial monárquica. Hoje, seria incapaz de me voltar e envolver politicamente com partidos, mas estou e quero estar sempre envolvida com as pessoas, porque este é o meu “estar” natural, é a minha segunda pele. Só que não tem cor, nem partido. Mas é LIVRE como eu.
Texto publicado no livro 25 olhares de abril, coordenado pelo meu querido amigo Prof.Dr. Carlos Garrido há muitos anos atrás. Mas ainda estou igual.
Obs: O texto foi revisto e corrigido pela autora
Gabriela Silva