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As locomotivas da Doca: um património universal

Em artigo anterior neste jornal do dia 11 do corrente mês, referente à recuperação de uma das duas locomotivas existentes no porto de Ponta Delgada, apresentei elementos que destacam a importância desse legado, bem como a ação de algumas personalidades para que se pudesse chegar ao presente momento. Entretanto, falta um outro tanto.
Esse outro tanto não é pouco.
Em primeiro lugar, não é pouco tendo em conta o enorme potencial das referidas locomotivas em termos museológicos, não particularmente no contexto local, regional, ou sequer nacional, mas antes num contexto global, enquanto elementos incontornáveis da epopeia que foi a Primeira Revolução Industrial, com epicentro na Grã-Bretanha. A este respeito, deverá mencionar-se o verdadeiro fervor e devoção que os caminhos-de-ferro registam naquele país, com inúmeros clubes ligados à sua preservação e utilização como elementos de cultura e lazer.
Não é pouco, em segundo lugar, pela genialidade do autor da bitola de tais locomotivas, considerado o segundo britânico mais famoso de sempre, de acordo com uma votação realizada no âmbito de um programa televisivo de 2002 (100 Greatest Britons), com grande impacto na Grã-Bretanha. As suas múltiplas construções e invenções incluem diversas soluções consideradas impossíveis à data, sendo o autor da linha férrea que liga Londres e Bristol, concebendo uma bitola que tornava possível maiores velocidade e conforto. A sua visão, contudo, ia mais além, preconizando o transporte em comboio e navio desde Londres até Nova Iorque, com um bilhete único. E isto nos anos 30 do século XIX, quando em quase todo o mundo se andava de carroça! Os três navios concebidos por si para o efeito eram os maiores navios construídos até à data, apresentando também sucessivas inovações tecnológicas. Oprimeiro navio (“Great Western”) foi o primeiro transatlântico concebido desde o início como navio a vapor; o segundo (“Great Britain”) é considerado o primeiro navio moderno (com casco de ferro e hélice como meio propulsor) a atravessar o oceano Atlântico. Já o terceiro (“Great Eastern”), lançado ao mar em 1858, era considerado muito à frente do seu tempo, tanto em termos de dimensão como de tecnologia, podendo transportar até 4.000 passageiros. Nenhum outro navio o igualou em dimensão durante 50 anos!… Realizou apenas algumas viagens transatlânticas, revelando-se um fracasso financeiro. Posteriormente, a partir de 1865, foi utilizado na instalação dos primeiros cabos submarinos entre a Europa e a América, por ser o único navio capaz de carregar o gigantesco cabo a lançar no oceano.
E não é pouco, também, porque a construção do porto de Ponta Delgada, iniciada em 1861,é, também ela, uma verdadeira epopeia à nossa escala, preenchida de reveses e desilusões e com conclusão apenas em 1943,sendo estas duas locomotivas testemunhas de uma parcela dessa história. Adicionalmente, poder-se-á considerá-las o único traço visível da tentativa de construção de um caminho-de-ferro na ilha de São Miguel, cuja estação central seria no Calhau do Languim, aproximadamente onde hoje se situa o edifício “Solmar” na marginal de Ponta Delgada. Os promotores do projeto consideravam que a sua concretização corresponderia, para a economia, ao que a autonomia representava em termos políticos.
Por fim, não é pouco pelo facto de os Açores carecerem de elementos que dinamizem e incrementem a sua oferta turística. De facto, estas locomotivas farão mais, muito mais do que se poderá imaginar, no que respeita à atratividade do arquipélago relativamente a um dos principais mercados emissores de turismo no mundo, como é o inglês, e ainda para determinados segmentos como o do turista que valoriza história e cultura. Apenas desse modo se poderá ambicionar o aumento da estada média dos turistas e níveis de satisfação superiores. Através da criação de um núcleo museológico, com as locomotivas da Doca como atrativo principal, poderá concretizar-se tal perspetiva, perpetuando a memória de Brunel e ainda a dos nossos antepassados que, por sua iniciativa, avançaram para a construção de um porto artificial. Auguro que possa ser o museu mais visitado dos Açores e financeiramente autossustentável.
Termino com um último parágrafo de regozijo: nada disto que escrevo é novidade, pois já o havia feito no final de 2005, em três artigos no extinto “Expresso das Nove” e ainda na “Azorean Spirit”, a revista de bordo da SATA Internacional, em vésperas do segundo centenário do nascimento de Brunel. Felizmente que hoje é possível retomar o assunto, falando não já do perigo que é este legado tornar-se apenas sucata, depois memória e, por fim, esquecimento, mas antes de como se tornará possível perpetuá-lo e capitalizá-lo.

Luís Machado da Luz*

*Doutorado em Sistemas de Transporte pela Universidade de Coimbra, ao abrigo do Programa MIT Portugal

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