Acabo de verificar que a semana agora iniciada se sobrepõe totalmente à primeira semana completa de Março de há 50 anos atrás: começou num Domingo, dia 3 e foi por aí adiante até ao Sábado, dia 9. Entre estas duas datas desenrolou-se na Assembleia Nacional então existente um debate dramático, em que de alguma forma se pôde já antecipar o que iria acontecer no 25 de Abril seguinte, isto é a queda do regime autoritário por total esgotamento e falta de apoio popular.
Já lembrei, em artigo anterior, o sobressalto derivado da publicação do livro do General António de Spínola, antigo Governador da Guiné e então exercendo o cargo, para ele criado, de Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, secundando o respectivo Chefe, o General Costa Gomes. O pedido de demissão do Presidente do Conselho de Ministros, como então se designava o cargo de Chefe do Governo, não foi aceite pelo Presidente da República. A Marcelo Caetano ocorreu então apresentar-se perante a Assembleia Nacional para expor a política que defendia sobre a defesa do Ultramar, solicitando da mesma uma reflexão e uma tomada de posição esclarecedora da crise política existente, à qual no entanto não fez qualquer referência.
O longo discurso sobre a matéria ocorreu na terça-feira, dia 5 de Março. Abriu-se a seguir um debate nos moldes então usuais, sem limites de tempo para os oradores e só terminando quando a lista de inscritos chegasse ao fim. A intervenção que vinha preparando já havia algum tempo sobre os limites da aplicação dos recursos do Estado a finalidades de Defesa, descurando a Justiça e o Bem-estar dos cidadãos, ocorreu na quinta-feira, dia 7 de Março. ( Por uma curiosa coincidência, foi por essas mesmas datas, dois anos mais tarde, que voltei a subir à tribuna do Hemiciclo de São Bento, como Deputado à Assembleia Constituinte, para propor que fosse inscrita na Constituição a criação da Região Autónoma dos Açores.)
O meu discurso caiu como uma bomba na sonolenta Assembleia e provocou uma controvérsia animada, com numerosas interrupções e apartes, que no meu Diário qualifiquei como uma verdadeira “bronca”. E afinal o que disse de tão escandaloso, de molde a lançar os coriféus do Antigo Regime todos contra mim? Estive a reler o texto completo na versão electrónica constante do site da Assembleia da República e o que encontrei foram as palavras, pelos vistos proibidas, sobre a guerra, que se podia perder mas não se podia ganhar, sobre o problema colonial, que era sobretudo político e não simplesmente militar, sobre a necessidade de promover um amplo debate nacional acerca dele e com objectivos democráticos, sobre a Autonomia Progressiva e Participada apresentada como linha de rumo pelo Chefe do Governo, que deveria ser prosseguida e mesmo acelerada, sem lhe serem fixados limites, podendo ir mesmo até à criação de novos países independentes.
Como se costuma dizer, a casa ia indo abaixo! Registei perto de 10 interrupções feitas por outros tantos Deputados, vários deles eleitos pelas então designadas Províncias Ultramarinas, além de numerosos apartes, alguns dos quais os Serviços competentes registaram, outros não. Há também vozes de aplauso e outras de não apoiado. Não faltou mesmo quem lembrasse que o Estado Português é, por força da Constituição, um Estado Unitário, antecipando um argumento que continua a ser invocado pelas vozes do Centralismo acerca da Autonomia dos Açores, então era a mentalidade colonialista a falar em voz alta… E o Presidente da Comissão Eventual para a Comunidade Luso-Brasileira foi mesmo ao ponto de qualificar de um erro histórico a independência do Brasil, como consta da publicação integral do debate parlamentar feita no semanário Expresso no Sábado seguinte, dia 9, mas não do Diário das Sessões, por ter sido retirada a embaraçosa diatribe, a pedido do próprio.
Havia sido apresentada uma moção de apoio à política governamental, mas de cuja conclusão estava conspicuamente ausente qualquer referência à Autonomia Progressiva e Participada. Por tal inclusão me bati, falando até com o próprio Presidente do Conselho, como consta do referido Diário, que achou bem. Mas nem sequer tal concordância demoveu as forças dominantes na Assembleia e por isso não participei na votação, retirando-me ostensivamente da Sala das Sessões e logo a seguir saindo mesmo do Palácio de São Bento, que de resto passei a frequentar cada vez menos, desanimado com o predomínio das correntes de ultra-direita, impedindo qualquer evolução do regime num sentido democrático.
Nos dias seguintes vim a saber do impacto do debate referido nos meios militares, desde logo durante a prevenção decretada no fim de semana seguinte em todos os quartéis de Lisboa, por não terem comparecido uns capitães ao embarque para os Açores, decretado para afastar alguns oficiais envolvidos no Movimento das Forças Armadas, entre os quais se destacavam Ernesto Melo Antunes e Vasco Lourenço. Até Jaime Gama, ao tempo a prestar o serviço militar obrigatório, me telefonou e estivemos a comentar os últimos acontecimentos do meio militar, conforme registei no Diário.
A conspiração militar para derrubar o regime estava já em marcha e logo a seguir deu-se o episódio da saída à rua da Unidade das Caldas da Rainha, em 16 de Março, após a demissão dos Altos Comandos e a manifestação chamada da “Brigada do Reumático”, o qual acabou por funcionar como ensaio para o 25 de Abril. Ainda assim o Governo anunciou, na noite desse dia, “reina a ordem em todo o País”.
João Bosco Mota Amaral*
*(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo
Ortográfico)