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Em suspenso

Nos últimos três anos tenho falado várias vezes e em diversos contextos sobre sexualidade. No entanto, à medida que fui ensaiando diferentes versões deste texto, notei alguma dificuldade em escrever sobre o tema. Talvez seja assim que se sentem as pessoas que num primeiro momento de consulta me dizem: “Nem sei por onde começar”.
Talvez isto aconteça por ser uma área tão vasta, ou pela importância que tem para mim (o que acarreta alguma responsabilidade), ou então esta resistência seja um reflexo da forma como as pessoas se debatem com o tema na própria consulta. Penso no exemplo mais recente, quando, a dado momento da consulta, ia já embrenhada num questionário sobre sexualidade e olho para a mulher à minha frente. Reparo no seu sobrolho em suspenso. Não é a primeira vez que me deparo com esta expressão facial, por este motivo. E não é como se tivesse chegado ao tema por acaso. Há múltiplas pontes entre a saúde mental e a saúde sexual (se é que podemos dividir a saúde nestas parcelas abstratas). Efetivamente, esta mulher descrevia alguns problemas, em que uma intervenção simples podia ajudar, mas ela não me deixou entrar muito por aí e a certa altura fitou-me e disse desconfiada: “nunca nenhum médico me perguntou sobre a minha vida sexual”. Não devo ter mostrado surpresa, já estava à espera. Lá me justifiquei (a denunciar que eu também preciso de rever as minhas ideias): “Sabe, para além de psiquiatra também sou sexóloga clínica e a saúde sexual é um aspeto fundamental da sua saúde”.
A verdade é que apesar da saúde sexual ser nuclear e indissociável de todos os outros aspetos da saúde de uma pessoa, não é uma área de formação obrigatória para os profissionais de saúde. E torna-se desconfortável e até eticamente questionável abordar um tema sobre o qual não temos formação. Felizmente isto vai mudando e vários aspetos da saúde sexual vão sendo introduzidos no contexto académico, pelo menos na formação médica.
A verdade é que olhando para o meu percurso não tive qualquer contacto com a saúde sexual de uma forma estruturada até ao internato de psiquiatria, quando me propus a iniciar a formação na área. Durante o curso de medicina só se abordavam as questões relacionadas com a função reprodutiva e infecções sexualmente transmissíveis, ficando tudo o resto relegado para o reino do indizível.
E este resto não é pouco, porque traduz muita da complexidade e potencial humano: o direito a uma vida sexual prazerosa, segura, livre de coerção, discriminação e violência, o direito a desenvolver as competências para ter relações interpessoais saudáveis, baseadas em comunicação e intimidade, o direito a nutrir a capacidade imaginativa e criativa, o direito ao autoconhecimento e investimento na autoestima, tudo isto num contexto de respeito pela diversidade e pluralidade de identidades, expressões e vivências.
Neste tempo em que vemos ameaçados direitos que já acreditávamos conquistados, seria igualmente importante que se cumprisse a legislação relativa à educação sexual nas escolas, para que pudéssemos todos tomar decisões em verdadeira liberdade, tendo acesso a informação fidedigna e adequada ao nível de desenvolvimento afetivo e intelectual, integrando diferentes perspetivas morais e permitindo a escolha de acordo com a nossa construção identitária. Quando não temos acesso a toda a informação, não se trata verdadeiramente de uma escolha, pois não?
Por isto tudo acredito que a sexualidade pode ser um verdadeiro instrumento de humanização, fundamental para a garantia de uma “vida boa com e para os outros” (Ricœur).

Mariana Bettencourt*

  • Psiquiatra e Sexóloga clínica
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