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Ranchos da Quaresma

Sai ano, entra ano e as romarias continuam a tradição de visitar as casas de Nossa Senhora, como aconteceu a primeira vez, em 29 de outubro de 1522, na sequência do terramoto que soterrou Vila Franca do Campo.
Esta manifestação penitencial “realizada pelos moradores da ilha, de correr as casas de Nossa Senhora a pé e descalços, de dia e de noite”, no dizer de Frei Agostinho de Monte Alverne1, envolvia, inicialmente, crianças, mulheres e homens.
Assim aconteceu durante dois séculos, até que, em 1707, a hierarquia eclesiástica proibiu a participação das mulheres, a realização de bailes e o uso de instrumentos musicais, como refere Carlos Vieira no excelente livro/album“Romeiros de São Miguel Arcanjo -500 anos de História”, editado em 2022 pelo Município Vilafranquense.
Como essa proibição provavelmente não resultou, em 1743 a autoridade diocesana proibiu pura e simplesmente as Romarias. Apesar disso elas mantiveram-se, tal a dimensão da fé e da religiosidade popular.
Um século mais tarde, em 1835, a autoridade máxima da ilha alegando “abusos e escândalos”2 proibiu também a saída das romarias.
Já no século XX, os ranchos de romeiros foram impedidos de passar pelo centro da cidade de Ponta Delgada carecendo de autorização administrativa.
Manuel Inácio de Melo (MIM) e António da Silva, ambos Mestres e figuras prestigiadas dessa manifestação religiosa, em entrevistas publicadas em 1982 na grande reportagem por mim efetuada na RTP-A, sob o título: “Romeiros de São Miguel”, declararam que tal decisão fora tomada após a implantação da República.
Anos mais tarde, durante a guerra colonial, as romarias ganharam uma grande projeção. Notava-se, então, uma importante vontade de reorganizar os ranchos, embora na opinião pública urbana persistisse uma manifesta descrença sobre as verdadeiras motivações religiosas.
O fato de a hierarquia católica não ter integrado as romarias nas novas dinâmicas conciliares colocando-se à margem dos “desvios” registados no passado, levou a que alguns mestres – devotos desta manifestação popular – desenvolvessem importantes ações de catequização e formação dos irmãos durante todo o ano. Tais iniciativas foram bem sucedidas, de tal sorte que as Romarias masculinas ganharam um novo dinamismo e o respeito da sociedade, também nas zonas urbanas. Novos irmãos de diversas classes sociais integraram os grupos, ressurgiram de novo as Romarias de mulheres e, como presentemente acontece, a tradição micaelense expandiu-se para outras ilhas.
A revitalização desta tradição secular, nos seus contornos sócio-religiosos merece ser analisada e estudada. Sobretudo porque hoje o fenómeno religioso não tem paralelo com os tempos da cristandade, e os atos litúrgicos do culto religiosos já não cativam os crentes, como acontecia há décadas.
Perante isto, por que será que estes movimentos quase inorgânicos, apoiados em genuínas manifestações públicas da piedade popular e numa cuidada formação, são mais apelativos para crentes e devotos que o tradicional e pomposo cerimonial litúrgico, predominantemente clerical? Que motivações mobilizam tantos “irmãos” romeiros que as cerimónias oficiais não conseguem atrair?
São questões importantes para serem analisadas no debate sinodal em curso, tendo em vista encontrar novas respostas pastorais e novos caminhos para a Fé.
A imagem dos ranchos de Romeiros continua a ser a de gente simples, penitente, crente e fiel aos valores evangélicos, contrários às regras que a sociedade atual defende.
Armando Cortes-Rodrigues nas palestras proferidas no Emissor Regional dos Açores, compiladas em dois volumes do livro “Voz do Longe”(1974), dedica a este tema 3 crónicas. E numa delas define o Romeiro como “um Símbolo e um Mistério” e acrescenta:

“Não é gente faminta, andrajosa, miserável, revoltada na sua pobreza contra a secura dos ricos, essa que aí vai: é gente sadia, que conta consigo, que deixa o amparo do trabalho de cada semana para pedir por todos: Pela Pátria, pela terra onde nasceram, pelos que trazem no coração, pelos que nos esperam na outra Vida e por aqueles que nem sequer sabem rezar…”

“São todos irmãos e é assim que se tratam uns aos outros.
A massa negra, quarenta, sessenta, oitenta, cem…que entoa a mais dolorosa e antiga melodia açoriana, que desperta os ecos dos montes e se confunde com a voz das ondas, leva consigo o mistério dos que a compõem: vai ali um padre! Vai ali um médico, um engenheiro, um homem que tem de seu, outro que tem fome, um que chora pela pena que leva oculta na alma, um que repõe pelo sacrifício o mal de que abusou…”

“Não há distinção alguma: quem vê um, vê todos! E todos são irreconhecíveis! Quando passam a cantar com o xaile pela cabeça, chapinhando lama, encharcados, fustigados da chuva impiedosa, que não consegue calá-los, todos se volvem num só Homem, que passa misteriosamente…”

Pela ilha do Arcanjo neste tempo quaresmal, há um cortejo orante com um cantar dolente que desperta a mãe-natureza para o louvor perene ao criador. São peregrinos de várias idades, fustigados pela crueza do inverno e pelas agruras da vida. Durante uma semana eles experienciam a proximidade com Deus, o valor do silêncio, da oração e da introspeção, a partilha de problemas, de erros, de dificuldades e até dos bens.
A Romaria é um tempo de verdadeira irmandade evangélica, um tempo de paz.
Basta uma fé destas, para dignificar um Povo! comentou Armando Cortes-Rodrigues.
1 Monte Alverne, Frei Agostinho. ((1961).”Crónicas da Província de São João Evangelista das Ilhas dos Açores”,vol.II, Inst.Cult. Ponta Delgada
2 PONTE, Carmen. (2007)”Romeiros de São Miguel. Entre tradition et innovation. De l’oralité au texte écrit” Dissertaçãode Doutoramento. Univ.Poitiers,Univ.Açores

José Gabriel Ávila*

*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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