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O misterioso mundo da administração pública regional

Há duas notícias das últimas semanas que são um tiro de canhão na nossa tão propalada Autonomia açoriana.
A primeira é a confirmação de que as receitas regionais já nem dão para pagar as despesas correntes.
A segunda é que continuamos a perder população, numa hemorragia demográfica só comparada aos tempos da grande onda emigratória regional.
E a grande questão que se coloca, perante esta realidade, é muito simples: como é que uma região a perder habitantes e sem receitas continua a engordar a sua poderosa máquina administrativa regional?
É um mistério com largos anos, a que pouca gente se tem debruçado, mas houve um senador açoriano, da nossa política nacional, que deu o alerta há quase uma década, sendo logo a seguir vilipendiado pelos próprios correligionários.
Trata-se de Jaime Gama, uma das personalidades mais lúcidas da política portuguesa, que raramente comenta assuntos relacionados com o seu arquipélago, mas não se conteve perante aquilo que está cada vez mais à vista de todos, que é uma região insustentável se prosseguir com o modelo que continua a desenvolver sem olhar para os sinais vermelhos.
Jaime Gama, que foi fundador do PS e Presidente da Assembleia da República, alertava então que “uma das limitações do projeto autonómico, que faz com que a discussão institucional fora desse contexto não tenha muito sentido, é o facto de as receitas geradas nos Açores serem insuficientes para assegurar o seu processo de desenvolvimento de uma forma sustentável”.
E prosseguia: “(…) a Região vê-se numa conjuntura difícil, que tem procurado equacionar, por um lado congelando investimento público reprodutível no desenvolvimento económico – quando opta por uma política de sustentação salarial dos vencimentos do funcionalismo e da galáxia que na Região constitui não só o funcionalismo da administração regional, mas também o agregado de empresas públicas regionais que funcionam como pagadorias de políticas regionais ou ainda acrescentando as transferências sociais a certas categorias de população, que, sem esses recursos, porventura, entrariam numa maior turbulência social – e, por outro lado, recorrendo ao endividamento (…) Um endividamento que não é contraído só sobre a poupança regional. É também contraído sobre a poupança externa, na medida em que, se fizeram as contas, a poupança regional não é suficiente para assegurar o nível dos empréstimos que são feitos à Região”.
Este é o cerne do problema da nossa região, que ninguém, no mundo da política, quer debater.
Os nossos políticos andam há quase uma década a discutir uma pretensa “reforma da Autonomia”, que não passa da gaveta bolorenta do parlamento regional, e uma revisão da Lei de Finanças Regionais, sem que encarem, com coragem, os excessos dos recursos na nossa administração, transformada na tal galáxia que atrofia o desenvolvimento regional.
O braço do governo dos Açores está em todo o lado. Não se pode dar um passo nestas ilhas sem tropeçar na mão do todo poderoso estado regional.
É uma dependência castradora que condiciona a sociedade.
Nascemos, vivemos e morremos sempre na dependência do subsídio, da aprovação de uma candidatura ou de um cheque ou voucher de apoio.
É como se fosse o Dubai, mas sem nenhum poço de petróleo.
Pode ser um estado regional falido, mas mete-se em tudo.
Quando empresas públicas e, agora, também, municipais, entram em colapso, por má gestão ou excesso de intervenção dos políticos, o braço governativo estende-se bondosamente para “internalizar” as gorduras, ficando a factura no lado dos cidadãos contribuintes e a vénia eleitoral no lado dos políticos.
Esta irresponsabilidade leva-nos a que, a 31 de dezembro de 2021 (últimos dados que conseguimos apurar), exerciam funções, na administração pública regional direta e indireta, setor empresarial regional e entidades mercantis, 20.507 trabalhadores (+3,7% face a 2020), que custavam perto de 500 milhões de euros em encargos remuneratórios.
As transferências do Orçamento de Estado já mal chegam para pagar o monstro da administração regional.
Para investir temos que esmolar junto das instituições europeias ou pedir emprestado à banca.
Como foi alertado no Fórum Económico e Social, em 2018, não fossem as transferências e o endividamento, a estrutura actual de geração de valor da economia dos Açores não seria sustentável por ter um peso muito elevado do setor público, uma vez que recairia sobre dois terços da economia (a privada) o restante terço (a pública). Em face de ameaças contínuas de redução de transferências, como as da Lei de Finanças das Regiões Autónomas (já concretizadas no passado), dos fundos estruturais (em discussão corrente) e do subsídio de mobilidade (também em discussão corrente), por exemplo, fica ameaçada a sustentabilidade da economia dos Açores aos níveis actuais.
No mesmo encontro o Dr. Gualter Furtado lançou outro alerta preocupante: “No que toca ao crédito é de relevar o facto de a poupança interna já não ser, há já algum tempo, suficiente para suportar o crédito procurado por famílias, por empresas privadas, pelo governo e por empresas públicas.
No que toca ao crédito a situação tem-se vindo a agudizar com a retração imposta nas taxas de conversão dos depósitos, mantendo-se a situação de insuficiência da poupança interna para suportar o crédito concedido.
No que toca aos impostos, regista-se uma tendência crescente da receita fiscal que, mesmo assim fica aquém de metade do valor total do orçamento”.
São tantos os alertas e os sinais, que custa acreditar que ninguém repare que estamos em contramão.
Não está em causa a máquina administrativa da nossa Autonomia, porque ela é fundamental, o que se questiona é o seu crescente agintamento, sem que os cidadãos notem na galáxia regional um crescido melhoramento da enorme burocracia em que se transformou.
Ir a uma repartição pública nesta região é tão penoso como aguardar que nos atendam no ‘call center’ da nossa transportadora aérea pública.
Não há economia ou região que aguente esta gigantesca santa casa da misericórdia em que se transformou a administração pública regional.
Socorro-me, novamente, de Jaime Gama, que em boa altura questionou: “Se uma economia, que funciona numa sociedade assim, é uma economia livre, apta a gerar uma sociedade mais livre e mais responsável? Ou se, pelo contrário, é uma economia que gera uma sociedade mais conformada, mais propensa a viver com essa rotina do que a enfrentar os desafios do futuro? Será que esse tipo de sociedade é um tipo de sociedade de onde possa emergir facilmente uma crítica, uma proposta alternativa, uma ideia diferenciada?”.
Cada um que pense conscientemente e responda, já que da classe política não se consegue obter um vislumbre de preocupação.
E percebe-se porquê.
Estão comodamente instalados e batem-nos sempre à porta para apresentar a factura.
Até quando?

Osvaldo Cabral
[email protected]

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