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Autonomia: todo o início tem um final

Na natureza «nada se perde, tudo se transforma»; mas em política a regra é outra: tudo o que tem um início é porque tem um final. Olhando a história política dos Açores essa regra política é manifesta: o sistema de donatarias, matriz ilhéu com capital em Angra, durou de 1461 até 1766, ou seja, 305 anos; o sistema da Capitania Geral dos Açores, matriz regional com capital em Angra, de 1766 até 1832, durante 66 anos; e o sistema distrital, matriz autárquica e sem capital política, de 1832 até 1976, durante 144 anos. E agora, desde 1976, estamos a viver um sistema de autonomia política, ou seja, matriz constitucional, democrática e autonómica, com 48 anos. Neste preciso momento nos Açores vivemos em certo perigo. O que é um sinal não estarmos preparados para viver a democracia no seu registo habitual: de que todos são iguais como cidadãos e humanos e que a evolução das coisas se faz com o diálogo e a tolerância. Quem julga estar no poder como seu património, imaginando que o mandato obtido pelo povo é de poder absoluto, não percebe que o outrem, quando lhe surgir a oportunidade, lhe vai aplicar a mesma regra – e, assim, em vez da política se concentrar em empurrar a sociedade para o bem-estar e a felicidade, está afinal concentrada no seu próprio umbigo.
Hoje são vários os sinais de perigo nos Açores; quando são políticos, jornalistas e personalidades públicas a defendê-los com naturalidade, isso mostra que estamos em crise. A autonomia é o melhor bem político que o arquipélago contém; sem ela somos pouco ou quase nada. Mas ela vive apressadamente em crise. Eis alguns sinais de perigo.
Cada uma das nove ilhas é um polo de desenvolvimento: cada ilha tem as suas próprias dimensões territoriais, sociais e idiossincráticas. Mas em termos de arquipélago (regional) não é possível que todas as ilhas sejam um polo de desenvolvimento coletivo (regional); é impraticável pela natureza das coisas. Desde o povoamento que essa naturalidade levou à criação de três centros urbanos de desenvolvimento coletivo (regional), Angra, Horta e Ponta Delgada. A partir da revisão estatutária de 1998as ilhas passaram a ter apenas um único polo de desenvolvimento coletivo, Ponta Delgada. Por via disso, veja-se o imbróglio do transporte aéreo com as ilhas do Faial e do Pico: ambas querem mais aeroporto, e vão-no conseguindo à custa duma desagregação da ideia de regional; veja-se o recente exemplo da defesa da amarração de um cabo de dados em S. Miguel devido ao momento sísmico que a ilha Terceira vive neste momento. É impraticável possuir autonomia política regional – se não tivermos medidas regionais. Ou seja, durante três décadas mantivemos uma ideia de regional correta, porque se projetava o desenvolvimento regional (coletivo) na naturalidade tripartida do arquipélago; um maior desenvolvimento nesses três blocos projetava maior acessibilidade às ilhas envolventes. Hoje, como a ideia regional é de uma única ilha, contra a naturalidade centenária do arquipélago e contra, pior ainda, a sua fundamentalidade constitucional, os problemas estão a avolumar-se e, com eles, a ideia de regional, região e autonomia política. Mais do que antigamente – cada vez mais cada ilha olha apenas para si porque as suas populações sentem que não fazem parte do coletivo, ou melhor, sentem, mas agem de modo diferente, no seu próprio interesse.
Com naturalidade, pois, as ilhas e as pessoas, vissem essa realidade institucional – criada pela própria autonomia. Coloca-se amiudamente a questão de que o deputado por representar a Região não respeita a vontade dos eleitores da sua ilha eleitoral. Essa questão não tem sentido ser sequer questionada. E, pior, quando é colocada como se fosse a lei a criar esse “problema”. Num modelo de parlamento o deputado é regional, nunca pode sê-lo de ilha: a autonomia é regional, os deputados são regionais e as políticas são regionais. E a questão seria a mesma com a ideia, outra perigosa, de uma “câmara alta”; isto é, um parlamento com uma câmara baixa composta por deputados regionais e uma câmara alta composta por membros eleitos do Conselho de Ilha, isto é, deputados de ilha. Ou seja, teríamos, digamos, 50% de deputados regionais e 50% de deputados de ilha; e aí também essa câmara alta teria a capacidade para limitar a câmara baixa, passaríamos a ter dois problemas em vez de um. Ora, no parlamento regional o deputado pode sempre defender a sua ilha; mas na deliberação está sempre em causa o regional e não a ilha; por isso mesmo, quando aprovam uma lei específica para uma específica ilha os deputados dessa ilha participam na deliberação. Um parlamento com duas câmaras não adiantaria nada à política regional. Apenas acrescentaria que a uns bastaria pertencer ao Conselho de Ilha, porquanto os outros estariam sempre sujeitos ao eleitorado regional. Conselho de Ilha, atente-se, que só tem representação empresarial, comercial, industrial; mas não tem sobre todos os outros assuntos regionais, como a cultura. Nós já tivemos no país parlamento com duas câmaras: com a Carta de 1826, a câmara dos pares e a dos deputados; a de 1836, dos senadores e dos deputados; de 1911, o senado e a câmara dos deputados. Perante esta evolução percebemos a motivação: a Constituição de 1822, liberal, tentou uma única câmara, mas o país ainda estava alicerçado na distinção de classes, por isso as de 1826, 1832 e 1911 sustentavam a dualidade que se foi diluindo na Assembleia Nacional de 1933. Em 1976 a Constituição portuguesa arrumou o assunto de vez: uma única assembleia da República porque esta se baseia, não nas classes sociais, mas na dignidade da pessoa humana. Em Espanha existem duas câmaras e tem sentido: todo o território está dividido em comunidades autonómicas, uma câmara para deputados eleitos num registo nacional e uma de deputados eleitos num registo de cada comunidade autonómica. E os casos federais também, como os EUA.
Surge ainda a hipótese de dar direito de voto aos jovens de 16 anos de idade. Numa altura em que os jovens adquirem consciência adulta mais perto dos trinta anos do que nos dezoito, isso não faz muito sentido. Se um jovem de 16 anos ainda não tem capacidade jurídica (não é maior, não pode assinar nenhum contrato sem a concordância escrita de um dos progenitores), como teria discernimento para votar? A maioridade aos 16 anos seria criar ainda mais problemas… a justiça seria incapaz de dar resposta aos… disparates contratuais. Ainda assim e sobretudo: com que motivo se quer atribuir a idade de 16 anos como suficiente para se votar?; qual é o problema que queremos resolver? Pior: qual o assunto regional que se quer resolver? Não devemos confundir inteligência com capacidade para decidir o futuro coletivo: uma pessoa alta não significa uma pessoa pensante de responsabilidade coletiva. Talvez se deseje apenas piorar a matriz democrática que corre em direção à estupidez política.

Arnaldo Ourique

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