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A Cidade Sem Xerife

Segundo dizem os entendidos, abril é o mês que mais reservas se faz para as férias. No entanto, se o destino for as Ilhas dos Açores, como toda a gente sabe, se não quisermos ser demasiadamente explorados, temos de reservar com um ano de antecedência.
Por cerca de três anos ficou popularíssimo o termo de “férias cá dentro”. Enquanto houver vida e saúde, tudo bem. Porque nunca é demais conhecer melhor aquilo que é nosso, o meio que nos rodeia.
Todos sabemos que estas tais “férias cá dentro” por vezes são mais caras do que as “férias lá fora”. Mas é necessário apoiar a economia local, e enquanto este drama da pandemia nos ameaçou, e continua a ameaçar, há que ter todo o cuidado, vivendo o dia-a-dia em segurança.
As férias daqueles três anos já se foram, e algumas deixaram boas recordações. Um marco central de todas elas fixou-se nas memórias daqueles dias passados no Estado do Maine, zona litoral, sobressaindo, entre outras, as lembranças do Parque Nacional Acadia. Coisa mais linda!
Mas o custo daquelas férias de três dias dava para passar uma semana no México, nas praias de Cancún, com tudo incluído! Mas, pronto. Está feito. Também gosto do Norte. O ar é mais fresco e saudável. E quando ao Norte me dirijo, em busca de aventura, lembro-me sempre da história (um caso verídico) da Cidade sem Xerife, que vos passo a contar:
Era uma vez, um tal de José da Ponte, que toda a sua vida teve familiares na América do Norte. Tanto do lado do pai, como do lado da mãe. Tios que atravessaram o Atlântico nos fins do século dezanove e princípios do século vinte e que, chegando ao Novo Mundo lançaram sementes à terra. Criaram raízes, floriram e deram os seus frutos, que vieram a ser os primos americanos, de primeiro grau, do José da Ponte. Alguns mais velhos do que ele, outros rondando a mesma idade, e ainda outros um pouco mais novos, como foi o caso de um tal Alfredo de Melo Botelho, um sargento americano que morreu na guerra da Coreia, de cuja memória resta o nome do contador desta história, porque José da Ponte tinha de dar a um filho o mesmo nome do heroico primo da América.
Vivendo na Ribeira Grande, São Miguel, Açores, já sendo um homem maduro e pai de filhos, José da Ponte recebera uns sapatos americanos de presente, que chegaram à Ilha numa saca de roupa. Calçou-os durante longos anos. Duas décadas, sem exagero, porque solas e protetores metálicos eram indispensáveis na sua manutenção anual, para além da tinta e da graxa lustrosa, que eram neles aplicadas uma vez por semana.
Por causa dos poucos filmes que havia visto na sua juventude, recordava que o melhor tinha por título “Vinte Anos Depois”. Tratava-se de um Western que descrevia a história de um cowboy, que fora preso por um crime que não cometeu e que, quando saiu da cadeia fez uma terrível vingança. Talvez tivesse visto mais uma meia dúzia de filmes deste género, mas aquele era o que mais recordava.
Quando se falava em construções fortes e seguras na Ilha de São Miguel, José da Ponte lembrava-nos que as casas da América eram feitas de madeira, escapando, claro está, os arranha-céus de Nova Iorque e de outras cidades grandes. Era esta a sua visão da América, sem nunca ter saído de São Miguel, pelos filmes que viu e por aquilo que lhe contavam. Também defendia a opinião do Canadá ser mais moderno e que, graças ao Dr. António Oliveira Salazar, a saída autorizada de muita gente dos Açores para aquele país beneficiou muitas famílias, e a própria Região, que se sentia sufocada de população sem haver terra para todos.
Aos setenta anos de idade José da Ponte visitou a América do Norte, acompanhado pela filha mais velha, genro e netos. Não teve outro remédio. Porque era viúvo e vivia com aquele agregado familiar desde que passou à reforma. Até àquela ocasião, nunca lhe havia passado pela cabeça realizar tal viagem.
Assim, em meados de julho de 1992 a família saiu de São Miguel com destino ao Canadá. Passou uns dias na área de Toronto, onde morava o irmão mais novo do José. Depois seguiu para Montreal, onde o genro de José tinha oito irmãos a viver, para além da sua própria mãe.
Tudo de acordo com os planos desta viagem, depois de cerca de quinze dias no Canadá, um pulo aos Estados Unidos, porque em Fall River vivia, e ainda vive, um filho do José da Ponte. Já, agora, uma ótima oportunidade para José conhecer os primos americanos. Os do lado do pai moravam em Fall River; do lado da mãe, em East Providence.
No seguimento da história, às zero horas de 1 de Agosto de 1992, uma carrinha de doze passageiros saiu de Fall River, Estado de Massachusetts, com destino ao Canadá, transportando dois casais, debaixo de forte chuva, numa imensa escuridão. Às sete em ponto, estavam na cidade de Montreal, à porta da casa que alojara os visitantes açorianos. Abraços, beijos, e outros cumprimentos. Descanso de uma hora, com pequeno-almoço apreciado e agradecido. Às oito iniciou-se o regresso a Fall River, na carrinha de doze passageiros, que agora transportava dez.
Já fazia sol, e nem parecia que havia chovido toda a noite. As lindas paisagens do Estado de Vermont eram deslumbrantes, como sempre são em dias de boa visibilidade. Formosos montes. Verdes, em Verde Estado, pois foram os seus verdes montes que lhe deram o nome. Maravilhosos vales, graciosas lagoas e lindas ribeiras. Todos os ocupantes da carrinha sentiam-se como se estivessem em São Miguel, dando a volta à Ilha numa das camionetes do Varela, perante mil e uma paisagens fascinantes.
Mas a estrada 89, que atravessa o Estado de Vermont de Norte a Sul não tem estações de serviço. As saídas daquela via rápida são poucas, muito distanciadas entre si, e dela poucas povoações se avista a curta distância. Quando as barrigas e as bexigas deram sinal, perceberam que era chegada a hora do almoço. Era conveniente pararem para uma refeição ligeira. Mas não havia sombras de Mc. Donald’s ou Burger King, muito menos Dunkin Donuts, ou outra coisa do género. Resolveram, então, sair da auto-estrada, seguindo uma sinalização que desapareceu por completo, fazendo com que uma localidade fosse encontrada depois de percorridas mais de cinco milhas.
Um Lugar fantástico! Mas nunca vieram a saber se era cidade, vila ou aldeia. Parecia uma cidadelha do Far-West. Cem por cento “country”, como nos dias de hoje se diria. E entrando nela, o veículo depressa se habituou ao seu ritmo. Lento como os movimentos ilhéus açorianos. Uma paz, um sossego, um “temos tempo”.
José da Ponte, sentado perto da janela apreciava tudo o que via. Main Street. Rua direita. Sim, queriam ficar na Rua Direita. Porque na Rua Direita é que se concentram todos os negócios principais de qualquer aglomerado populacional. Sim, ali estavam os correios à esquerda, um banco à direita, uma igreja ali, mais à frente. Ainda por cima, mais esta: um bar/restaurante, tipo Salon, das cidades dos cowboys, como se via nos filmes. Igualzinho! Sem pôr nem tirar. A ele foram almoçar, porque pareceu ser mesmo o único sítio que lhes poderia dar de comer.
Lá dentro, umas quatro mesas com homens de meia-idade a beber e a jogar, e só havia lugar ao balcão. Sentaram-se. Comida escolhida. Sandes. Da ementa não sobressaía outra coisa. Sandes de carne assada, o que os americanos chamam de roast-beef, e batata frita.
Começaram a comer normalmente, porque tinham fome e apetite. Mas quando alguém alertou para o facto da carne estar vermelha, meia ensanguentada, a maioria parou de mastigá-la, fazendo a fome morrer com a batata frita. Porém, o mexicano que acompanhava o grupo, e que fazia parte de um dos dois casais de Fall River, teimava a dizer que assim é que se devia comer. Assim é que a carne tinha toda a sua proteína, e outras coisas mais. Sendo um grande apreciador de roast-beef, comeu tudo o que teve na vontade, e guardou os restos dos outros para se saciar nos dias seguintes. Era familiarizado com aquele tipo de carne assada.
Pensando bem, com tudo aquilo a que já nos habituámos, aquilo não estava nada mau. Hoje papamos qualquer roast-beef por prazer, num abrir e fechar de olhos, e já tivemos oportunidade de reparar que as próprias gentes de São Miguel também já mudaram de opinião neste assunto de carnes demasiadamente cozinhadas.
José da Ponte mirava tudo. Apreciava até os movimentos das pessoas, e guardou recordações de tudo aquilo que viu. Já no lado de fora, quando a caravana se aprontava para seguir viagem, naquela Rua Direita, onde só se viu pouco mais de meia-dúzia de automóveis estacionados, apareceu um homem em cima de um cavalo, usando chapéu e botas de cowboy. A viagem para Fall River continuou, e o resto dela dá para fazer outras estórias. Para acabar com esta, realça-se que José da Ponte, até ao fim da sua vida, nunca se esqueceu daquela localidade. Queria tanto saber o seu nome, mas ninguém se informou a este respeito. Nem mesmo o número da saída da auto-estrada foi memorizado. Por isso, todas as vezes que a ela se referia, José da Ponte chamava-a de “Cidade sem Xerife”. Pois, é! Nos filmes do John Wane, ou do Kirk Douglas, e de outros do género, sempre se via xerifes nas cidades.
Se era ou não sede de condado, não interessa. O que se viu foi que aquela localidade de Vermont era pacata demais. Não necessitava um policial, muito menos um xerife!
Já muitas e muitas vezes temos atravessado o Estado de Vermont, e grande é a conta de nos termos enfiado em suas pequenas localidades. Mas não há maneiras de reencontrar a tal Cidade sem Xerife. Um caso curioso baseia-se numa outra localidade daquele Estado, que aparece nos filmes de Natal do Hallmark Channel, e que tem por nome Evergreen. Na realidade, Vermont tem, pelo menos, quatro sítios com este nome, mas nenhum deles é povoado. Evergreen é, portanto, uma cidade fantasma.
Outra curiosidade do Estado do Monte Verde é o fato de ter três cascatas com o nome de Moss Glen Falls, afastadas entre si dezenas de milhas.
Já conhecemos uma, que de acordo com algumas opiniões é a mais bela; e temos intenção de visitar as outras duas. Qualquer dia, sem ser hoje.
Quando isso acontecer havemos de tentar, novamente, encontrar a velha Cidade sem Xerife, que José da Ponte guardou na memória como recordação da América.

Haja saúde, férias e aventuras.
Ao som das nossas violas
Se canta belas canções.
Um xerife sem pistolas
Não precisa munições.

Muito eu já viajei,
Tantas vezes comi bife.
Mas ainda não encontrei
A cidade sem xerife.

Alfredo da Ponte

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