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Delírio de culpa

Não é raro ouvirem-se por aí disparos destes,
— Hoje, todos têm uma doença mental. Uns malandros que não querem trabalhar.
Ou ainda,
— Fingidos! O que lhes falta é trabalho no lombo. E nós a pagar para andarem a…
O verbo que se segue varia, entre meia dúzia de opções, de acordo com a dimensão do preconceito, educação, egoísmo e a [falta de] inteligência.
Há uns anos, antes ainda da pandemia, cruzei-me com a senhora mais triste que alguma vez conheci. Os vizinhos, há semanas sem a sentirem por casa, chamaram, preocupados, as autoridades.
— Verdade seja dita, mal vemos a Maria das Dores, mas já vai para duas semanas que nem um ai… Tememos o pior. – relatava a vizinha ao agente da polícia, enquanto outros dois se preparavam para arrombar a porta. Uma pilha enorme de lixo atrás da porta dificultava-lhes a missão. Lá de dentro vinha um cheiro fétido que os obrigava a cobrirem o nariz e a boca como podiam. A aflição com o cheiro e a escuridão só era superada pelo sobressalto que o rastejar dos ratos entre os amontoados lhes provocava.
— O quarto é no primeiro andar! – bradava, de fora, a vizinha.
Foi deitada na cama, cadavérica, braços ao longo do corpo, olhos fechados, absolutamente imóvel e serena, que um dos polícias encontrou a Maria das Dores. Qual não foi o seu espanto quando lhe sentiu um amplo e rítmico pulso carotídeo.
— Ambulância, chamem a ambulância!! Está viva!
Dois ou três dias depois, passada a catatonia, mas ainda muito debilitada, entrava de cadeira de rodas no mal iluminado gabinete médico, conduzida por um enfermeiro.
— Como se sente, Maria das Dores?
Levantou os olhos dum qualquer ponto no chão que lhe prendera a atenção. Senti que apesar de já me ter olhado, só naquele instante, em que os seus grandes olhos azuis se pregavam aos meus, é que me vira. Subitamente invadida pela angústia, quase se levantou da cadeira. Não fosse a caquexia, talvez tivesse fugido, mas, travada pelo corpo velho e intransigente, resignou-se e começou a chorar. Muito. Compulsivamente.
— Porque chora, Maria das Dores?
Olhou-me novamente. Arregalada. Nervosíssima.
— Não sabe? Não o avisaram? Tenho a doença… vou pegar-lha… – conseguiu soltar entre soluços, lágrimas e culpa. — Vai espalhar-se. Matar toda a gente…pobres alminhas!
Todo aquele desassossego, provocado pela ideia delirante de que estaria infetada com algo contagioso e fatal, comovia-me. Tentar contra-argumentar, sabia-o, seria inútil.
Semanas depois, mesmo com pesadas doses de antipsicóticos e antidepressivos, dizia-me com a certeza inabalável que só um delírio permite,
— Toda eu morta há tanto tempo e a morte que não chega. Tranquei-me no quarto, com a roupa que levarei para cova. Fechei portas e janelas para conter a maldição. E vocês trazem-me para aqui!? Ai, Deus, que desgraça! E a morte que não chega.
Na minha cabeça, uma imagem. O fim de um jogo de xadrez. As últimas peças, insuficientes para alcançar a vitória, a precipitarem um empate. Um final que não satisfaz. Sem vencedores, só vencidos. A Maria das Dores e a Morte. Em cima disso, a culpa. A culpa delirante de carregar a doença e disseminá-la a mim, ao mundo, a todos. E a pena acessória de ter de continuar viva, só para assistir à pandemia que não soubera impedir.
Decerto, a dimensão do sofrimento da Maria das Dores, a senhora mais triste do mundo, despertará a empatia dos que agora a conhecem. Ou será que ainda acreditam que só o trabalho a libertará da doença mental?

João Mendes Coelho*

  • Médico psiquiatra e adictologista
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