Edit Template

Folie à deux – Delírio de culpa II

Nesse período funesto em que as consultas eram todas feitas por telefone, havia uma primeira avaliação de uma mulher que, apercebi-me enquanto via o seu processo, nunca tinha recorrido a qualquer hospital no Serviço Nacional de Saúde em quase sessenta anos de vida. A entrevista teve de ser feita com a irmã, que me explicava:

  • Doutora, podia falar com ela, mas a voz dela é tão baixa que não ia entender nada.
    Marquei consulta presencial dali a uns dias, de maneira a coincidir com o dia em que passava o autocarro na aldeia. Vieram as duas, após uma noite mal dormida: a irmã, muito pequena e agitada, e ela, esguia e quase transparente, o olhar a trespassar tudo, imutável.
    Na minha memória o gabinete parece-me agora um prolongamento do seu estado interno, com um vazio triste a transbordar do seu corpo parado, contaminando tudo em redor.
    As suas palavras parcas, penosamente lentas e sussurradas denunciavam a dona da sua servidão: a culpa. No seu entender, não havia perdão possível para tão gravosa mácula, falhas que mais ninguém poderia compreender. Falava comigo, dirigia-me fugazmente o olhar, mas resignada com a sua condenação, aquele era um diálogo entre ela e o seu deus. Um deus cuja misericórdia já não se achava digna de merecer. A minha angústia ia aumentando à medida que o espaço à nossa volta parecia estreitar-se. Estávamos num lugar escuro, a possibilidade da alegria tinha deixado de existir, seria talvez o poço onde a haviam encontrado semanas antes. A culpa, de mão dada com a vergonha, silenciara qualquer pedido de ajuda. O risco de se matar desaparecera porque agora a culpa era tão grande que acreditava que nem do alívio da morte era merecedora, que deveria permanecer num eterno retorno de contrição.
    Após um longo período de internamento e tratamento conseguimos mitigar o delírio. A culpa, no entanto, persistiu, instalada para além da doença, como se fosse uma estrutura fundacional da sua existência.
    A culpa tinha sido uma constante ao longo da sua história, acompanhando-a nas aventuras da infância, nos desejos reprimidos da adolescência nos lugares hiper-religiosos onde crescera, nos erros silenciados nas múltiplas casas onde prestara cuidados e que eram, afinal, apenas humanos. Uma culpa desproporcional, culturalmente aceite e reforçada.
    Mas a culpa também estava alicerçada na sua casa, percorrendo as paredes de granito frio, as fontes coartadas pelo gelo, corrompendo tudo, desbotando os retratos de família. Instalara-se ali muitos anos antes, alimentando-se das crenças e da provável doença de uma linhagem de mulheres que a tentaram em vão afogar no poço da aldeia, a par da dor e da sua própria existência. A culpa era património inventariado na herança familiar.
    Transversal a todos estes contextos, a culpa terá certamente contribuído para manter essas mulheres longe dos cuidados de saúde, fomentando estigma e sofrimento e permitindo que ela quase tivesse passado a vida inteira sem tratamento. Quase.

CONTACTOS DE APOIO E PREVENÇÃO DO SUICÍDIO
SOS Voz Amiga 213544545, 912802669, 963524660
Conversa Amiga 808237327, 210027159
Serviço de Aconselhamento Psicológico da linha SNS 24: 808 24 24 24
Linha de Saúde Açores: 808 24 60 24

Mariana Bettencourt *

* Psiquiatra e Sexóloga clínica

Edit Template
Notícias Recentes
Quase meio milhão de turistas em Maio
Amanhã há Marchas de São Pedro, Sábado as Cavalhadas e R. Grande já prepara a Feira Quinhentista
Realizadora americana vai rodar filme de ficção inteiramente na ilha de São Miguel
Preço dos combustíveis sem alterações em Julho
Artur Lima promove diálogo com líderes políticosda Califórnia em benefício da cooperação com os Açores
Notícia Anterior
Proxima Notícia

Copyright 2023 Diário dos Açores