O recente anúncio do Governo, referindo-se ao défice do SRS cuja valor soma o número astronómico de 960 milhões de euros, escassos dias antes do desastre que atingiu duramente o HDES e todos os Serviços de Saúde da ilha de S.Miguel, era o aviso de uma premonitória nuvem negra que aí vinha para ficar.
Embora não fosse mais do que uma conhecida e muito inquietante informação é, contudo, uma realidade para a qual nós, sociedade civil, temos olhado com perplexidade e com total inacção crítica, como se de uma fatalidade se tratasse.
São 960 milhões de euros de passivo acumulado durante 22 anos, após o perdão de 60 milhões de euros ao SRS, em 2001, pelo governo de António Guterres: uma média de 44 milhões de défice ao ano!
O orçamento da Saúde para 2024, inscrito no Orçamento da Região (cerca de 400 milhões de euros), representa 20% da Despesa total (23% em 2023), sem contar ainda com o esforço orçamental que vai ser necessário fazer nos próximos tempos face à crise decorrente do incêndio no HDES.
Corresponde a um valor de investimento de 7,4% do PIB da RAA. É um esforço brutal da Despesa, 20%. Cerca de 52% acima do que o governo da República Portuguesa (RP) gasta no SNS (13,2% do Orçamento), para uma diferença também significativa, 42% mais, nos valores de percentagem do PIB (7,4 da RAA vs 5,2% da RP).
O défice acumulado do SRS representa 30% da Dívida global da RAA enquanto que o défice do SNS representa 0,4% da Dívida global da RP. É uma diferença abismal, proporcionalmente 35 vezes superior, que coloca o nosso SRS, e as finanças regionais, numa condição perigosamente não sustentável e que só uma “política de avestruz” pode justificar tal desastroso caminho. Este défice custa, em termos de serviço da dívida, qualquer coisa como 22,5 milhões de euros ao ano!! Dinheiro suficiente para construir 2-3 Centros de Saúde novos ou, em 5-6 anos, um Hospital novo.
A primeira constatação imediatamente a fazer é que é evidente que não produzimos riqueza suficiente para este SRS, ou não afectamos a despesa em percentagem do PIB nos valores adequados às necessidades ou, ainda, estamos a gastar acima das nossas possibilidades, eventualmente desperdiçando recursos financeiros sem retorno em “ganhos de saúde”.
O pior de tudo é que poderíamos dizer que temos uma parque de Saúde totalmente renovado (centros de saúde novos ou totalmente reabilitados), preparado para os desafios da transição climática (eficiência energética, p.e.), da transição digital (informatização transversal de processos administrativos e clínicos), da Telemedicina, da Hospitalização domiciliária, do combate aos maiores flagelos de Saúde Publica, da Doença mental, etc, mas NÃO TEMOS NADA DISSO.
Não quero ser negativista neste momento tão delicado – só ver o que não se fez ou conseguiu, até porque também fui um dos intervenientes, propositivo ou alheado – nada disso, conseguiram-se muitas coisas boas ao longo deste processo mas é preciso reflectir sobre os muitos erros e omissões cometidas. Houve muita falta de diálogo, muita falta de confiança nas chefias intermédias, muitas administrações “dóceis” de costas voltadas umas para as outras, muita decisão vertical sem colagem aos problemas no terreno e às pessoas, aos profissionais, etc.
Quem já se esqueceu o que representou a Saudaçor no descalabro gestionário e financeiro do SRS?
Um Serviço de Saúde com tantos constrangimentos financeiros, como este nosso, jamais sairá do buraco em que irresponsavelmente foi colocado.
Num sector em que os valores estão todos do lado da Despesa e os da Receita, como sabemos, sáo insuficientes, vindos apenas dos impostos dos contribuintes (cerca de 45% do Orçamento da Região), é – a nosso ver – absolutamente necessário que a RP, desde já e por muitos anos, assuma o serviço da dívida do SRS, comparticipe em pelo menos 50% todas as obras de reabilitação ou de construção ‘de novo’ de infraestruturas, como CS e Hospitais, que terão de ser realizadas até ao final da década.
Do nosso lado, da sociedade civil, deveremos dar o exemplo de não pactuar com a inconsequência e a demogagia de certas reivindicações , como, por exemplo, “zero taxas moderadoras” em consultas, urgências e exames para as pessoas não elegíveis de isenção de pagamento. Foram-nos dizendo ao longo de todos estes anos, como se toda a receita não importasse colectar, que o valor das taxas moderadoras era desprezível, não modificava nada. Mas modifica, financeiramente e como apelo ao sentido de responsabilidade na utilização dos meios, sobretudo neste momento difícil que atravessamos desde o começo da pandemia covid-19. Não é pela existência de taxas moderadoras que o SNS/SRS perde o seu carácter “universal e tendencialmente gratuito” que, obviamente, queremos que mantenha.
E ainda, talvez primeiro que tudo, seja fundamental pedir aos diferentes agentes intervenientes do sistema, desde aos diferentes grupos de profissionais, de utentes e administradores das unidades, de prestadores de serviços convencionados, de fornecedores vários, no sentido de detectarem e reflectirem conjuntamente sobre os vários focos de desperdício e ineficaz redundância de meios e circuitos, que se tornam muito penalizadores para o SRS na sua eficiência global, não só com importantes impactos negativos na prestação dos cuidados, como, estamos em crer, também e muito especialmente, na vertente económico-financeira do Sistema.
Um trabalho gigantesco espera por nós, velhos e novos, considerando que o SRS é um pilar da democracia autonómica e de equidade social, cuja qualidade urge melhorar, desenvolver e intransigentemente defender.
Fontes:
Orçamentos e Planos de Investimento da RAA, 23-24
Orçamento Geral do Estado, Governo de Portugal, 23-24
Observatório da Despesa em Saúde 01, NOVA Health Economics & Management
Guilherme Figueiredo*
*Reumatologista, ex-Director do Serviço de Reumatologia do HDES/Dir. Executivo da CAL-Clínica