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A declaração de inconstitucionalidade das leis regionais

“Se isso é assim para o Estado – porque toda a população, na generalidade, está conectada a um conjunto de leis por que se rege na sua vida privada e pública; para a Região Autónoma as coisas têm outra feição. E por dois motivos estruturais: os insulares sujeitos à autonomia estão duplamente sujeitos a dois grupos de leis, por regra, distintas, ou muito distintas: as leis do Estado e as da Região Autónoma.”

Existe na Região a ideia de que o que não é declarado inconstitucional é porque está correto, e, conclui-se que as leis regionais estão bem. Essa ideia é errada e perigosa: errada, porque não é verdadeira e temos de a explicar; perigosa, porque quem assim pensa não tem inteira consciência da realidade da ordem jurídica. Vamos ver como.
Esta ideia imaculada é compreensível, não apenas para o cidadão comum, como para a maioria dos políticos regionais. Realmente, faz sentido imaginar que a ordem jurídica está bem; pois as leis estão em funcionamento no ordenamento jurídico – não há motivo, na generalidade, para se desconfiar. Mas essa ideia é errada: o ordenamento jurídico está sempre em movimento perpétuo e, portanto, existem sempre muitos problemas, uns que são desencadeados para os tribunais e não só, e em muitíssimo maior número os casos que, por algum motivo, se perpetuam no tempo sem que sejam colocados em dúvida por um tribunal ou por uma entidade política. O Estado não possui uma instituição especificamente mandatada para verificar todas as leis na generalidade; aliás, nem isso seria correto: por um lado, porque é na vivência das leis que se colocam os problemas; e, por outro lado, porque importa mais as leis que limitam os direitos fundamentais e isso já é uma obra colossal. E nem é necessário: sendo as leis usadas no dia-a-dia pela sociedade pública e civil, logo, elas são escrutinadas para que se ajustem à realidade, ora através do diálogo que desencadeie a alteração da lei, corrigindo-a, ora através dos tribunais que vão julgar essa lei à luz da constitucionalidade das leis ou da legalidade face a leis de valor hierárquico superior.
Se isso é assim para o Estado – porque toda a população, na generalidade, está conectada a um conjunto de leis por que se rege na sua vida privada e pública; para a Região Autónoma as coisas têm outra feição. E por dois motivos estruturais: os insulares sujeitos à autonomia estão duplamente sujeitos a dois grupos de leis, por regra, distintas, ou muito distintas: as leis do Estado e as da Região Autónoma. Exemplos: o Código do Trabalho é adotado à Região com lei regional; ora, além das dificuldades interpretativas na aplicação do direito em geral, nasce aqui outra dificuldade, a de saber se a lei regional não limita, de algum modo, algum dos direitos nacionais; ou se, embora não violando a lei nacional por via da igualdade, traduz uma elementar mudança que em vez de promover a qualidade das relações de trabalho nas ilhas, aumenta as dificuldades. Saiba o leitor que, em rigor, a Região nem necessita alterar esse Código na maioria das suas normas. Outro exemplo: o Código dos Contratos Públicos da Região. Este Código além de desnecessário (quando muito, uma elementar alteração aqui e ali com uma lei simples; não existe nada que o justifique, mas aqui não podemos desenvolver essa matéria) foi declarado inconstitucional, os seus dois primeiros artigos, o que desqualifica toda a lei regional desse Código; no entanto, continua a ser utilizado. Os exemplos multiplicam-se.
Mas se a Região tem uma média de criação de 25 a 32 diplomas por ano e se poucos ou nenhuns não são declarados inconstitucionais – isso não é motivo para dizer que está tudo bem. Não.
Se olharmos para os dados da experiência do Tribunal Constitucional, TC, temos a seguinte realidade: a exemplo, no ano de 2021, dos seus 948 acórdãos, apenas 6 são das regiões autónomas. Se verificarmos o ano de 2020 temos resultado idêntico: dos 773 apenas 48 são das regiões autónomas, e são, ainda assim bastantes devido aos famosos casos dos presos em hotéis devido à Covid e a propósito de resoluções do Governo Regional (e não leis da Assembleia Legislativa). Aliás, podemos até sublinhar: veja-se a quantidade de acórdãos sobre leis do Estado que subiram ao TC – muito superior aos poucos das regiões autónomas, por comparação da dimensão material e quantitativa de leis e decretos-leis e outros atos normativos menores. Estes dados merecem explicação: regra geral os acórdãos do TC são sobre a aplicação das leis do Estado, excetuando alguns anos em que, por causa do regime jurídico da lei regional da Madeira sobre os contratos de colónia, subiram em fiscalização concreta nos tribunais para o TC; regra geral, a fiscalização no TC sobre a legislação regional é na fiscalização preventiva (através do veto jurídico quando se está a criar o diploma) e na fiscalização sucessiva (quando o Representante da República, RR ou o Provedor de Justiça; os deputados da Assembleia da República fazem-no quando existe violação dos estatutos políticos).
O que mais contribui para a ideia errada de que se não existe declaração de inconstitucionalidade é porque estão bem as leis regionais, são os seguintes elementos: por um lado, as pessoas desconhecem que o TC, nas fiscalizações preventiva e sucessiva, só analisa a lei e sobre ela produz uma decisão sobre essa lei regional se se fizer execução do princípio da iniciativa. Ora, só tem essa capacidade certos órgãos: na fiscalização preventiva, o RR; na fiscalização sucessiva, o RR, a Assembleia Legislativa e o Governo Regional, e ainda o Provedor de Justiça e o Procurador-Geral da República. Neste caso as entidades estaduais podem desencadear na generalidade dos casos; mas os órgãos regionais apenas podem quando estiver em causa a violação dos direitos da Região ou por violação do seu Estatuto. Por outro lado, a inação política do RR: como é consabido, e sobretudo em virtude do princípio da vetustez, este órgão, por um lado, nada faz na fiscalização sucessiva e pouco produz na fiscalização preventiva. Ou seja, esta vertente é bem limitativa da garantia dos direitos fundamentais dos insulares. Aliás: pode dizer-se que o bloco de legislação açoriana que viola grandemente direitos fundamentais subsiste, 1.º, porque os atuais governos ainda não atuaram aí e, 2.º, porque o RR é inativo nesse ponto.
Ou seja: por um lado, existem leis que são claramente inconstitucionais, e ilegais face ao Estatuto e outras leis gerais da República, mas mantêm-se em vigor por inércia das entidades competentes que poderiam desencadear o processo de desqualificação da lei; por outro lado, a própria sociedade que sofre as consequências negativas dessas leis por algum motivo, acomoda-se. Por isso, tais ideias que vimos a discutir são erradas e perigosas. Pode dizer-se que, neste âmbito, os Açores vivem numa pós-verdade autonómica, num sentimento e pensamento que tem pouco de verdadeiro. Se não existe o impulso do princípio da iniciativa por falta de impulso democrático, naturalmente que parece estar tudo bem, quando afinal existe muito mal; grande número de pessoas sofrem as consequências – mas esses não têm condições de avançar para os tribunais, e as entidades políticas competentes acomodam-se na inércia própria do modelo regional de sistema de governo.
Foi o que aconteceu com o não recente Decreto Legislativo Regional n.º 8/2020/A, de 30-03, o regime jurídico do processo de delimitação e desafetação do domínio público hídrico na Região: não foi sujeito a veto político, nem a veto jurídico, nem a fiscalização sucessiva. Isto é, o sistema de governo é fraco e as instituições pouco valem. O ordenamento jurídico autonómico está recheado de diplomas que são uma afronta à Constituição, ao Estatuto, à Autonomia e aos açorianos.

Arnaldo Ourique

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