“Longe vão os tempos em que a hierarquia não encarava as festas populares do Espírito Santo com a dignidade que os crentes lhes atribuíam e que sempre estiveram relacionadas com a partilha de bens alimentares aos mais carenciados.”
Maio e junho são os meses, por excelência, das festividades religiosas, coincidindo com a primavera e o desabrochar dos frutos da terra.
Este ciclo vital foi integrado nas primitivas celebrações da cristandade. Passados dois milénios a tradição mantém-se pujante, embora com as naturais mutações civilizacionais.
A Festa é um conceito multifacetado: envolve a cultura, a identidade, a celebração litúrgica, a fé, a crença, a alegria, a festa, o acolhimento, a partilha, a diversão, a afirmação de um povo ou comunidade.
A manifestação pública e coletiva de todos estes conceitos gera um dinamismo individual e coletivo que distingue as festividades e as comunidades que as celebram, proveniente de fatores relacionados com as geografias, as identidades e as culturas.
Nesta época do ano, por esses Açores fora, observam-se facilmente as diferenças das celebrações, se bem que em comum todas têm presente o sagrado.
As Festas do Espírito Santo continuam a ser as mais antigas e populares, sobretudo no meio rural e suburbano. Nos ambientes urbanos e na faixa etária mais jovem, o culto ao Divino não tem o mesmo fulgor e dinamismo de há um século, quando instituições de beneficência promoviam celebrações religiosas e cortejos de grande dimensão pelas ruas da cidade.
Estou convicto que o trabalho didático feito nos estabelecimentos do ensino básico dará os seus frutos a médio e longo prazo, embora numa perspetiva mais etnográfica que religiosa.
Longe vão os tempos em que a hierarquia não encarava as festas populares do Espírito Santo com a dignidade que os crentes lhes atribuíam e que sempre estiveram relacionadas com a partilha de bens alimentares aos mais carenciados.
Os bodos, como ainda é conhecida a distribuição de pão, leite e vinho na Ilha Terceira – os jantares ou distribuição de pão noutras ilhas – eram um costume daquelas festividades. Todavia, essa prática foi proibida nas Ordenações Filipinas e “o próprio poder eclesiástico procurou refreá-las. Estabelecendo ligações fortes entre o corpo e a alma, o sagrado e o profano, estas festas passaram a ser mal vistas pela Igreja” 1
Segundo Araújo,”As Constituições do Arcebispado de Braga purgavam a igreja e o adro de manifestações profanas, prescreviam a proibição de se dormir, comer, beber, bailar e cantar músicas profanas dentro das igrejas e interditavam as corridas de touros, a montagem de palanques e a realização de jogos nos adros”.2
A proibição eclesiástica que se estendeu também à Diocese de Angra, não demoveu os devotos do Espírito Santo. Todas essas prescrições continuam a constar ainda hoje dos programas e rituais festivos, embora realizados junto a Capelas e Teatros onde se conserva as insígnias.
Há outras festas que ocorrem em paralelo com os Impérios. São Chamados Santos Populares: Santo António, São João e São Pedro.
Devido ao tipo de celebrações, com atividades predominantemente profanas, essas festas conquistaram facilmente toda a população, nomeadamente crianças e jovens.
Alguns municípios escolheram as datas de 13, 24 e 29 de junho para feriados municipais, atendendo ao envolvimento da população em marchas, cavalhadas, arraiais e muitos outros entretenimentos desses dias.
Importa reconhecer a importância da Festa, não só como tempo de lazer, de alegre convívio e de relacionamento comunitário, mas como marcos de afirmação da identidade cultural e social das populações.
As diversas geografias do interior de cada ilha e das várias ilhas em particular apresentam manifestações tão diversificadas que importa preservar e divulgar, não sem procurar investigar e perceber a sua razão de ser e a forma como ainda hoje se mantém vivas.
O exemplo das marchas de Vila Franca, de Sto António da Lagoa, da Ribeira Seca, das Cavalhadas da Ribeira Grande e das mais recentes – Sanjoaninas e de todas as que se lhe associaram, sejam de São Miguel ou doutras ilhas – carecem de uma investigação sócio-histórica mais profunda.
O mesmo se diga dos impérios do Espírito Santo em cada uma das ilhas, pois todos eles apresentam uma diversidade de rituais que se integram na etnologia, na gastronomia e no folclore. Mais recentemente, por razões demográficas ou pela nova conceção sobre a dignidade da mulher, surgem novas líderes a desempenhar as funções, antes só permitidas aos mordomos.
De tudo isto uma conclusão se pode inferir: os costumes e práticas sócio-religiosas tradicionais são marcas da identidade e da cultura de um povo que as expressa na alegria da Festa e da celebração da vida. Por isso são “a alma da nossa gente”.
Dia de S.to António, 2024
1 ARAÚJO,Maria Marta Lobo de, Actas do Colóquio Internacional, PIEDADE POPULAR, Terramar, 1999, p.501-514
2 Constituicoens Synodaes do Arcebispado de Braga, Lisboa, 1697, pp 328-331
José Gabriel Ávila*
*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com