“Temos chefias fracas”, disse a Ministra da Saúde há poucos dias no Parlamento, a propósito de algumas Administrações e Chefias de Serviços do Serviço Nacional de Saúde (SNS), não sem que imediatamente a seguir tenha dito, “não é hostilizar, é apoiá-los e ajudá-los a cumprir a sua missão”.
Ao que, tocado pela imprevisível afirmação da Ministra, respondeu, quase de imediato, o Presidente da Associação dos Administradores Hospitalares – …”aceitamos o escrutínio da nossa actividade desde que, e quando, nos seja permitida autonomia e fornecidos os meios necessários ….já agora, que muitas das escolhas sejam mais exigentes…”, aludindo às presumidas nomeações políticas.
RTP Notícias, 12 de Junho
Chamo esta troca de galhardetes por vir a propósito do que eu dizia em artigo prévio sobre as “muitas administrações ‘dóceis’ de costas voltadas umas para as outras…”.
É claro que não pretendíamos dizer que a maioria das pessoas nomeadas são incapazes ou não preparadas para o exercício dos cargos: nada disso, elas são tornadas incapazes pelo estilo de governança do sistema no qual se integram. E isso tem sido tão verdadeiro na Região a partir de certa altura da história do nosso SRS. A tentação centralizadora, controleira, tem sido inibidora de políticas e decisões adequadas às realidades de cada unidade de saúde entendida como individualidade numa realidade local, de concelho, de ilha. É um mal sistémico que tem impregnado o SRS.
Em parte, pela pequenês do arquipélago, pela prática culturalmente enraízada de “política de paróquia”, de obediências e interdependências cruzadas. Por outra parte, talvez a mais importante, pelo gigantismo que a dívida descontrolada que o SRS foi ganhando – por deficiente planeamento, administração e gestão. Um ciclo vicioso do qual ainda não percebemos como sair. Por algum lado teremos de atacar este problema. Que soluções se abrem neste momento de profunda e agravada crise?
O SRS sofre de um problema de organização, de gestão e de definição de objectivos claros de saúde para os problemas identificados na nossa população. A prova inequívoca disso é que tem sido incapaz de cumprir aquilo que define como prioridades. O Plano Regional de Saúde 2030, que está prestes a ser adoptado como modelo conceptual eorientador das políticas de Saúde para a actual legislatura e seguintes, sob o lema – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e da Saúde – refere, no seu intróito (Parte I – Perfil de Saúde da Região), que dos objectivos e metas propostas a atingir no anterior Plano apenas, em média, 30% do total foram conseguidas (13 em 43), ou seja, 70% delas falharam!!O que se poderá esperar de um Plano que parte desta base?
(Veja-se a completa indigência – zero propostas de intervenção, zero metas de melhoria inscritas no PRS – na abordagemde um grupo de doenças crónicas como a “Artrose e Patologias da Coluna Vertebral” querepresentam.na população açoriana acima dos 15 anos de idade. uma taxa de prevalência de 17,9 e 55%, respectivamente; com clara tendência de agravamento entre 2014-2019. Fonte: PRS 2030_Consulta Pública)
“Planos formais, de facto, “inexistentes”, são frequentes na nossa cultura.”
(Fonte: Relatório Primavera. Observatório Português dos Sistemas de Saúde)
Modelo conceptual do PRS 2030
inspirado na Myosotis marítima
(Extraído da PartII_Consulta Pública)
Ainda por cima, o SRS não é mais barato do que o SNS, se consideramos as dotações orçamentais que lhe são atribuídas. É mais caro. Per capita, o SRS tem uma dotação orçamental superior em 11% ao nacional (400 milhões€/240 mil hab versus 15 mil milhões€/9,974 milhões de hab). Mas, o défice anual do SRS tem sido, em média, de 44 milhões€ face ao orçamentado (versus 1,08 mil milhões€ do SNS em 2023), o que projecta, feitas as correções, para um valor per capita do nosso SRS 15,5% acima do SNS. E, então, se compararmos coma Região Autónoma da Madeira o contraste é mais gritante: para 2024 o orçamento da Saúde da Madeira será de 305 milhões€ para 253.000 hab – 1206€/hab, verba para os 3 Hospitais e 47 Centros de Saúde.
RTP3-Madeira, 22/1/2024
Que explicações racionais, minimamente científicas, existem para estes factos? Será que a realidade arquipelágica é suficiente para justificá-los? Não creio. Deficiente organização e gestão, por consequência baixa integração de cuidados e eficiência, estarão, seguramente, na base de um considerável desperdício de recursos.
O SRS é uma superestrutura que do ponto de vista organizacional, apesar de encerrar um corpo jurídico e regulamentar exaustivo – vidé o Estatuto do Sistema Regional de Saúde (ERS), suas actualizações e sequelas regulamentares desde 1999 até 2023 -, cumpre muito pouco com o que nele está consignado, nomeadamente, em relação à autonomia e organização das Unidades de Saúde.
Apesar de no ERS estar concebida a existência de Unidades Locais de Saúde (ULSs), soba forma jurídica de Unidades de Saúde Ilha (USI) logo se determinou que, nas ilhas com Hospital, as USI só agrupariam os Centros de Saúde (CS). ERRO CRASSO, quanto a nós, ponto de partida para a política de “costas voltadas” dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) com os Cuidados Hospitalares (CH), Cuidados Continuados e Paliativos (CC e CP). Percebe-se aqui o tal respeito paroquial.
No ano da graça de 2024, do ponto de vista organizacional, não existem, verdadeiramente, as condições necessárias para assegurar um plano articulado de uma Rede de Cuidados Integrados de Saúde, hoje o desiderato fundamental de qualquer sistema público de saúde moderno, actuante e eficiente.
Neste momento de crise profunda que se vive na ilha de S.Miguel que papel está reservado ao Conselho Regional de Saúde, aos Conselhos Consultivos e Técnicos da USISM e do HDES? Seria interessante ter conhecimento público, ou darem-nos nota sumária, dos pareceres destas importantes instâncias de apoio à decisão, se é que existem.
Sim, pode haver uma grande “Janela de Oportunidade” que é a de reestruturar e reorganizar o SRS, no sentido da sua melhor funcionalidade, eficiência e sustentabilidade, num processo contínuo de modernização das estruturas e na inovação de formas de trabalho que considere e bem-trate o papel fundamental dos recursos humanos do Sistema. Abra-se a discussão (cont.)
Guilherme Figueiredo*
*Reumatologista, ex-Director do Serviço de Reumatologia do HDES/
Dir. Executivo da CAL-Clínica