“Tenho um ruído na minha cabeça que não me larga… não é bem um ruído, é uma tempestade. Quando essa tempestade passar, penso nisso.”
Uma parte significativa do meu trabalho é junto de pessoas com doença mental grave e em exclusão social, a que se somam uma infinidade de outros problemas. Demasiadas vezes tão ou mesmo mais graves do que a própria doença.
Na antecâmara de uma consulta, reparo na breve nota que a equipa de rua me tinha deixado sobre o meu próximo doente. “Joe, 72 anos, sem-abrigo no centro de Ponta Delgada. Resistente a todas as intervenções. Remarcação da primeira consulta.”
— Bom dia, Joe. Creio que não nos conhecemos. Sou médico. Psiquiatra. Como poderia ajudá-lo?
— Estive aqui no outro dia. O senhor não veio. Tinham-me dito que vinha às dez. Esperei até às dez e meia, o senhor não veio, fui-me embora.
— Lamento, Joe. Devemo-nos ter desencontrado.
— Pois. No caminho, (procura qualquer coisa nos bolsos da mochila) quando saía daqui, tirei o x-ato que tenho sempre comigo (puxa repetidamente a lâmina para a frente e para trás).Pus-me a pensar por que motivo o senhor não me teria querido atender. Talvez fosse demasiado bom para me atender. Ou eu não merecesse a sua atenção. Talvez fosse um caso sem esperança, que nem se deu ao trabalho de vir.
— Nada disso, Joe. — Interrompo-o. — Certamente nos desencontrámos, estive aqui toda a manhã de segunda-feira.
— Bom… No caminho de volta, dei, na banca daquela mercearia aqui perto, sabe, com uns belos morangos. Adoro morangos… sempre adorei. Peguei em três e pu-los ao bolso. A senhora da mercearia apercebeu-se e veio atrás de mim. Sabe o que me disse?
— Imagino que lhe tenha pedido para pagar ou devolver os morangos.
— Foi. Isso mesmo. Fui com a mão ao bolso, tirei um, trinquei-o a meio e devolvi-lho, mesmo na palma da sua mão. Queria lá saber. Não foi bonito, pois não? Eu sei.
— Decerto não foi.
— Pois. E sabe o que me disse a senhora a seguir?
— Faço ideia. Zangou-se consigo?
— Aí é que está. Disse-me… Disse que se quisesse morangos não precisava de roubar… bastava pedir. E ainda disse que podia levar os que quisesse. Desde esse dia, sempre que há morangos na mercearia, lá estou eu. Mas faço questão de os pagar. Às vezes, fico “short” uns cêntimos. Mas a senhora diz sempre “está mais do que pago” ou “leve mais uns, por conta da casa”.Salvou-me a vida. O psiquiatra nem se tinha dado ao trabalho de aparecer. Eu, decidido a cortar-me, mas aquela senhora salvou-me. Percebe?
Demoro-me com essa imagem no pensamento.
— O que acha de ir passando por aqui, comer uma refeição quente, tomar um banho e, quem sabe, passar a noite, para não ter de ficar na rua?
— Tenho um ruído na minha cabeça que não me larga… não é bem um ruído, é uma tempestade. Quando a tempestade passar, penso nisso.
— Posso ajudar com a tempestade, Joe, se me deixar.
— Hmm… Pode. Pode tentar. É que eu durmo na rua, mas é no sítio mais seguro de Ponta Delgada.
— A sério!? Posso saber onde fica “o sítio mais seguro de Ponta Delgada”?
— Nas arcadas, a meio caminho entre a PSP e a Judiciária, sabe?
O meu desencontro com o Joe quase lhe custou a vida, mas a comunidade, aquela senhora da mercearia, salvou-o. Hoje, o Joe já não vive nas ruas. Deu-nos – deu-se – uma segunda chance. E continua a comer e a comprar os seus morangos, sempre na mesma mercearia. A tempestade passou.
CONTACTOS DE APOIO E PREVENÇÃO DO SUICÍDIO:
SOS Voz Amiga: 213544545, 912802669, 963524660;
Conversa Amiga: 808237327, 210027159;
Linha de Saúde Açores: 808 24 60 24.
João Mendes Coelho*
- Médico psiquiatra e adictologista