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Um sábado em Ponta Delgada

Desço a rua da memória numa manhã de sábado. Uma festa de nuvens gravita ao fundo sobre os telhados. Apesar do tom cinzento e carregado, adivinha-se um ar leve, jucundo. Na ilha, as quatro estações dançam sob os acordes do imprevisto.
Ao chegar à esquina, entre a rua da Vila Nova e a avenida Lisboa, volto à esquerda. Avanço lentamente pelo cinzento do inverno. O passeio está húmido, brilhante. Estas pedras que piso, de basalto, acarinham os meus passos. Avanço sem pressa. Uma ilha é uma ponte para o mar. Vou pela rua como no poema do poeta espanhol António Machado:

“Caminhante, são teus rastos
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há-de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.”

No Largo 2 de Março noto o senhor Raúl no outro lado do passeio. Tem os contornos de um cavalheiro do princípio do século XX, trajado como um fidalgo, lenço ao pescoço, boquilha, chapéu preto de feltro. Saúda-me com a solenidade de um patriarca, a mão direita ao alto, branca como uma asa de gaivota. (Só aparece de luvas pretas de cabedal nos dias em que o frio incomoda a sua idade). A esmerada educação, os modos e o trato são notáveis, exemplares, de uma nobreza que não é comum em qualquer tempo, em qualquer lugar. Viveu largos anos nos Estados Unidos. Viajou. Teve um percurso de filme, cheio. Acumulou memórias e experiências. A sua vida apresenta os contornos de um romance de aventuras. “Uma boa parte dos homens – escreveu Ortega y Gasset – não tem mais vida que a das suas palavras, e os seus sentimentos reduzem-se a uma existência oral”. Quando o senhor Raúl fala, porém, há um regresso inevitável a um mundo a preto e branco. O herói das suas histórias não foi traçado a pulso, palavra a palavra, mas sob a romântica visão do seu universo, sustentado por cânone próprio.
Sigo em direcção à livraria O Gil. Encontro o proprietário, o senhor Gil, por trás do balcão. Sorri, amável, com a tranquilidade e a cortesia de sempre. Eduardo, o funcionário, atarefa-se com embrulhos de livros. Pego no semanário O Jornal, pago, e saio. Vou até à porta da Tabacaria Açoriana. Espreito à procura de um rosto conhecido. As mesas todas tomadas. Decido ir ao café Gil cujo proprietário é agora o João, um jovem do Nordeste. Chegou a Ponta Delgada com a vontade férrea de vencer, e conseguiu-o. O café-restaurante está sempre cheio.
Peço um café e sento-me a uma mesa junto à entrada. Folheio o jornal. Sei que não conseguirei ler. De um momento para o outro entrará um amigo que virá juntar-se a mim. Mas este ritual de sábado, de que nunca prescindo, tem o conforto de um prazer. Não consiste apenas no odor do café e no cheiro do papel impresso, mas na tranquilidade de uma casa grande com vozes. Tudo isto constitui uma ilha, inumeráveis mistérios poéticos.
Ao sair do café estarei ao pé do mar. Diante de mim, num grande espectáculo de nuvens, barcos, percursos semânticos de aves. Um vasto horizonte de luz. Maior do que a minha vida, invadirá todo o meu ser.
Na minha memória da ilha, todos os sábado são este sábado. Ou seja, um imenso auditório onde canta o mundo.

Eduardo Bettencourt Pinto

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