Num certo sentido a extrema-esquerda não é perigosa porque não é religiosa; a extrema-direita porque é religiosa é sempre, e muito, perigosa. A ideia de confundir os factos para alterar a história parecer-nos-ia que é um pensamento já ultrapassado; mas eis que se repete o passado, a capacidade de viver a ilusão na base de contradições insanáveis.
A década de 1970 é extraordinária em factos históricos importantes, mesmo antes do famoso 25 de abril: na revisão da Constituição do Estado Novo em 1973, as províncias ultramarinas passaram a designar-se por “Estados”, acontecimento que teve relevo na construção das autonomias políticas de 1976, sobretudo na ideia de abertura a uma certa autonomia dos povos e, em termos técnicos, nos conceitos de interesse específico na criação de leis regionais autonómicas já previsto nas leis ultramarinas. Em 1974, a 25 de Abril os militares tomam conta do poder que caiu de podre, através duma revolução militar-social: militar-social, porque ela surge por via de leis de equiparação de patentes militares, e por isso mesmo conhecida por Revolução dos Capitães (ver os decretos-lei 353 de 13 de julho de 1973 e 409 de 20 de agosto do mesmo ano); militar-social, porque instantaneamente aceite pela maioria esmagadora das populações portuguesas que aderiram espontaneamente, e desde logo pelo cravo popular da portuguesa; e militar-social, porque esses militares eram maioritariamente comunistas a que hoje designaríamos de extrema-esquerda). Como foi uma revolução de natureza militar, os acontecimentos subsequentes tinham eminente matriz militar que era dominada pela esquerda comunista, e radical por estar, nessa época, fortemente alinhada com a União Soviética. E essa evolução perigosa foi truncada em 25 de novembro de 1975 e novamente por militares e este acontecimento tem o mérito de ter recolocado o país na senda do 25 de Abril, sendo os historiadores unânimes no sentido de que foi aqui que se se iniciou efetivamente “o processo de estabilização da democracia representativa”. E é este acontecimento que está a provocar os sentimentos recalcados da extrema-direita religiosa (a fação mais perigosa, porque inconsciente).
Podemos festejar todos os acontecimentos importantes; ninguém está impedido de o fazer. Mas querer desvalorizar o 25 de Abril a favor do 25 de Novembro — é, no mínimo, estapafúrdio: sem o primeiro não existiria o segundo; quebrar o velho Estado Novo fazendo-o desaparecer só por si é um monumento. A anarquia do Verão Quente de 1975 também é um acontecimento importante: porque intervieram em conjunto os militares e a sociedade em peso; aliás, o Verão Quente teve grande impacto no Verão Quente insular, cuja ação em S. Miguel, para alguns, foi o centro nevrálgico do que seria a autonomia política açoriana. E foi-o realmente: não por que se defendesse, numa 1.ª fase, uma autonomia melhorada da autonomia distrital; mas porque por detrás da cortina social estava em preparação e desenvolvimento um assalto ao poder nos Açores, fazer do arquipélago um Estado independente e com a ajuda de certa elite da diáspora açoriana; e que talvez não aconteceu, sobretudo porque os Estados Unidos não aceitaram com a sua indiferença pelo assunto, e porque as sociedades e populações insulares eram e são genuinamente portuguesas.
Mas esta década tem outros momentos de grande impacto político e histórico: a primeira eleição livre para a criação de um novo e moderno Estado, a Assembleia Constituinte, a Constituição e a Autonomia Constitucional tornando o país um Estado unitário regional pela primeira vez na sua história; e a sua concretização com a aprovação dos Estatutos Provisórios das regiões autónomas, as primeiras eleições regionais, os primeiros parlamentos e governos regionais, as primeiras leis de origem autonómica, os primeiros orçamentos, a criação dos símbolos autonómicos. A década de 1970 – é estruturante na história do país. Tal como como foram a criação do país por D. Afonso Henriques em 1139, ou a conquista integral da autonomia portuguesa em 1642, ou a Constituição liberal de 1822, ou a República de 1910. Por entre todas estas datas subsistem outras tantas de enorme relevo; mas são estes marcos os mais distintivos porque deles surtiram, numa síntese sempre incompleta, o que somos hoje.
Mas o que é que está aqui em causa? Por que motivo, certa extrema-direita, se exalta tanto com o 25 de Novembro? e em prejuízo do 25 de Abril? É que a extrema-direita, de fação religiosa, não aceita os elementos militares e comunistas que compõem o 25 de Abril. O 25 de Novembro também tem o elemento militar; mas sobretudo tem os moderados, os não comunistas, e a sociedade envolvida. Enquanto no 25 de Abril as populações saíram à rua com ar perplexo do acontecimento, contentes, mas ainda não acreditando; no 25 de Novembro a sociedade tinha já perdido a virgindade. A sociedade teve de arregaçar as mangas e dizer à extrema-esquerda de então, comunista e não comunistas e pertencente às Forças Armadas, que o processo democrático era do povo, e não dos militares. Esta síntese, aparentemente simplista, é realista: assim como na Constituinte da Constituição liberal de 1822 muitos ou a maioria dos deputados eram políticos que tinha estudado nos seminários e tinham, portanto, uma visão mais moderna do país; na Revolução dos Cravos as forças militares estavam pejadas de comunistas ou simpatizantes do Partido Comunista Português. É neste ponto, cremos nós, que reside a dor autoinfligida da extrema-direita, de matiz religiosa: rejeitam a lógica e o estaticismo da matriz política do 25 de Abril, preferindo, em vez da aceitação dos factos, o absurdo e a irracionalidade. Peter Sloterdijk explica este tipo de extrema-direita na sua obra “Reflexos primitivos”, como um regresso do dadaísmo do século XX, um registo de protesto irracional e absurdo.
Arnaldo Ourique