Tal como para a primeira, o cenário estava definitivamente montado para a segunda volta que se concretizou no passado domingo em França. Todo o complexo da informação pública e das redes sociais, usurpando a fala e o pensamento da maioria dos franceses, já se tinha unanimemente “conformado” com uma “previsível e inevitável” vitória da extrema-direita.
O país estava já “preparado” para aquele desfecho, e Jordan Bardella falava já como alguém que, de acordo com os desejos de Marine Le Pen, depois de selada a aliança com uma considerável ala republicana do sistema e contando com o apoio de importantes interesses económicos, lograra finalmente apropriar-se das vestes de primeiro-ministro da pátria da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade.
Tentando explorar ao máximo as potencialidades específicas do sistema eleitoral francês, uma formação pluripartidária de esquerda denominada Nova Frente Popular, agrupando: França Insubmissa, Verdes, Partido Socialista e Partido Comunista, propôs-se desistir nos círculos onde os republicanos de Emanuel Macron estavam à sua frente, contra a União Nacional de Bardella, e desafiou Macron a desistir, por sua vez, para a Frente Popular nos círculos onde esta força estivesse à sua frente, igualmente contra a extrema-direita.
A Nova Frente Popular cumpriu integralmente com o que se comprometera e, apesar das reservas iniciais de Macron e a não desistência para a Frente Popular de alguns dos seus candidatos mais fracos, os franceses, fechando olhos e ouvidos às sondagens, aos demagogos e às certezas dos analistas, decidiram decidir, acorrendo em muito maior número às urnas e derrotando sem vacilar e de forma expressiva a extrema-direita. Mas não só: Além disso, decidiram também castigar os indecisos apoiantes de Macron e as suas políticas belicistas e de camaleão, dando a vitória eleitoral à Esquerda francesa da Nova Frente Popular.
De assinalar que a importante quebra da abstenção (apenas 33%), ao invés do que tem acontecido noutras circunstâncias (Portugal?), não serviu neste caso de grande proveito aos demagogos da extrema-direita…
Refeitos da surpresa (talvez não muito agradável) com a derrota dos arrivistas de Bardella e, em certa medida, também com a derrota dum sistema previamente ensaiado (onde pontificam tanto adeptos do neoliberalismo, como da extrema-direita), a informação pública e as redes sociais reorganizaram-se para, novamente em quase uníssono, considerarem agora que os franceses, para derrotarem a extrema-direita se enganaram ao votar numa nova ameaça, agora de “extrema-esquerda”, quando poderiam ter votado nos homens de Macron…
E porque se mostrou afinal tão ameaçadora, para esta gente, a esquerda vencedora?
Porque os quatro aliados puseram de lado certas diferenças e animosidades pessoais e acordaram entre todos: aumentar o salário mínimo nacional e os salários em geral; tabelar os preços dos alimentos essenciais, da eletricidade e dos combustíveis; revogara decisão de Macron do aumento da idade da reforma; investir na transição verde e nos serviços públicos. Contas feitas, tudo isto financiado, sem rombos no défice, por via da tributação dos superlucros, do grande património e do corte em certos benefícios fiscais.
“Ameaças” que poderão sê-lo, de facto, para alguns poucos (embora com muito), mas longe de ameaçarem, como se verificou, o juízo idóneo e o bom senso manifestados pela decisão dos franceses de domingo passado…