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A propósito do centenário de Dias de Melo

Dias de Melo não era um entusiasta de regatas de botes baleeiros. No entanto, se fosse vivo, do Alto da Rocha do Canto da Baía, onde nomalmente terminava os seus livros, não deixaria de acompanhar o trajeto das canoas participantes nas provas de remo e vela que hoje se disputam na Calheta de Nesquim, sua terra natal.
O escritor baleeiro, recentemente editado pela Imprensa Nacional Casa da Moeda num volume intitulado “O Ciclo da Baleia” que integra três das suas obras de referência: Mar Rubro, Pedras Negras e Mar pela Proa, é o paladino do baleeiro honrado, reto, inteligente, lutador, explorado, que assume a sua frágil e intrépida condição de homem do mar: “…se ouvirdes dizer a um homem que ande no mar (…) que não tem, que nunca teve, medo do mar, ficai vós sabendo que esse farsante ou é tolo ou não conhece o cerrado em que anda a lavrar.”1
O fascínio do mar cedo cativou Dias de Melo. Numa entrevista que lhe fiz em 1978, para o jornal “Correio dos Açores”, o escritor confessou-me ter chegado a pensar fazer carreira na Marinha, mas cedo afastou esse sonho.
Optou pela docência, pela escrita em todas as suas formas de expressão e pela recolha de estórias e vivências das gentes do Pico. “Na memória das Gentes”, em cinco volumes é uma obra cultural e etnográfica de enorme importância para a salvaguarda da identidade e do conhecimento do património cultural picoense. Merece por isso uma investigação cuidada no âmbito de estudos académicos relacionados com essa área do saber.
Dias de Melo foi um humanista, um “missionário” da justiça na luta desigual que opôs centenas de baleeiros a industriais e vendedores do óleo de quem dependiam para subsistirem com suas famílias e suavizar a condição de pobreza em que viviam.
Então, ser baleeiro, era muito mais do que uma profissão de risco: era uma necessidade de sobrevivência, como acontece ainda noutras terras com pescadores de outras artes.
Os baleeiros eram gente muito pobre, mestres em vário ofícios, que tudo largavam quando rebentava o foguete na vigia.
A sua heroicidade adivinha-lhes da capacidade de resistirem à penúria e não da coragem por matarem baleias a que eram obrigados, pois se o não fizessem outros o fariam com vantagens. Por isso esfolavam-se a remar para chegar primeiro aos sítios onde se encontravam os cardumes, molhavam-se até às entranhas com mar bravo ou chuva forte para, ao cair do dia, suados e resfriados de perigosas lutas, rebocarem até à fábrica o monstro inerte.
Ao falar-se hoje da faina baleeira e dos seus principais protagonistas – os baleeiros – deve ler-se a bibliografia de Dias de Melo nas suas diversas expressões, para se perceber a história e a sociedade da época.
Sem ser baleeiro, ele vivenciou toda a problemática baleeira que influenciava toda a “Vida Vivida em Terras de Baleeiros”2.
A sua intenção foi sempre denunciar as injustiças, salvaguardar os direitos do “ peixe miúdo” e dignificar as gentes e os lugares.
A “Viagem do Medo Maior”, por exemplo, é uma interessante novela que recria uma viagem atribulada num pequeno barco de boca aberta, entre a Calheta de Nesquim e a Manhenha.
Recorrendo à terminologia tradicional e à linguagem popular que ele conhecia bem, Dias de Melo demonstra a sua identidade com o universo local e o conhecimento do meio.
A narrativa d”A Viagem…” releva a coragem e experiência do Mestre António Espiga.
Com a “Estrela da Sorte” a abarrotar de mulheres e crianças, o velho baleeiro enfrenta uma inesperada maresia que se levantou da banda do leste. Em silêncio, Espiga ultrapassa os perigos e conduz a sua embarcação ao porto da Manhenha onde decorria a Festa da Senhora das Mercês “a mais linda das redondezas.”
Não é inocente a menção que Dias de Melo faz à antiga produção de verdelho na Ponta da Ilha, sobretudo no lugar da Manhenha, mais não seja para recordar aos presentes que também ali o saboroso nectar foi produzido em apreciáveis quantidades e qualidade:
“Quando havia o verdelho, há mais de cem anos, o verdelho da Manhenha era do melhor, vinham navios, nesse tempo navios de vela, não havia outros, embarcá-lo por essas costa, tanto vinho verdelho da Manhenha e enarcava que os caminhos, por esses campos que vão ter ao mar, estão todos cortados pelas fundas rilheiras dos carros de bois que o carreavam, em pipas, para os embarcadoiros, e os navios ue os carregavam levavam-no aí para fora, para esse mundo de Deus, para a Inglaterra, a Rússia, o Brasil, dizia os antigos, sei lá para que países mais…”(Melo,1993,p.49)
Parece que ainda estou a ouvir o Senhor Professor (era assim que lhe chamava), ao telefone, contar-me tim-tim-por-tim-tim a estória do seu próximo livro. Ele falava como se estivesse a ler a sua próxima obra, numa linguagem fácil, simples, contagiante.

  1. A 8 de abril de 2025, faz cem anos que José Dias de Melo nasceu.
    A literatura açoriana de expressão portuguesa foi enriquecida com a sua vasta bibliografia, pelo que as instituições culturais picoenses e açorianas devem começar a pensar como homenagear o nosso escritor baleeiro.
    A temática baleeira respeita a toda a ilha. Cabe pois ao Museu do Pico, à Escola Secundária das Lajes, ao Município e às autarquias locais, nomeadamente da Calheta de Nesquim e da Piedade, promoverem iniciativas dignas da efeméride: Colóquios, Conferências, reedições de livros, etc, ou outras que perpetuem a obra de um escritor que universalizou o Pico e os Açores.
    Em Ponta Delgada, Dias de Melo desenvolveu uma persistente atividade jornalística e literária. Ele próprio considerou o “Cidade Cinzenta” um dos seus melhores livros.
    Compete ao Município e à Universidade assinalar também o centenário do seu nascimento.
    Dias de Melo foi um operário da escrita, um lutador pela justiça e pela liberdade pelo que merece o público reconhecimento e, sobretudo, a divulgação e leitura da sua obra.

1 Dias de Melo, A viagem do Medo Maior, Edições Salamandra, 1993
2 Dias de Melo, Vida Vivida em Terras de Baleeiros, crónicas, 1983

José Gabriel Ávila*

*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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