“Veio um dia em que, inesperadamente, nos visitou aqui no céu dos Açores uma lua diferente daquela a que estávamos habituados. Brilhante e de uma proximidade perturbante, derramava sobre tudo e todos a magia de um poder a que não se podia fugir.”
Esta languidez de fim de verão. O verão parado sem saber se já chegou o tempo da despedida ou se melhor será persistir em nuvens de indolência e na preguiça lisa do mar.
As pessoas, essas, também paradas, olhos ausentes, cismam. Ou, como os meus vizinhos do Café ao lado, saboreiam em longos goles, a cerveja.
Poderá o sabor da cerveja mudar conforme as épocas do ano? Parece que sim. Pessoas e coisas deixam-se contagiar por esta languidez de fim de verão.
Até aquela linha fechada com que o céu e o mar teimam em circunscrever quem vive na ilha, deixa de nos aperrear. Ignoramo-la. Deixou de existir.
E mesmo sem cerveja, ponho-me a saborear este tempo novo deste agosto novo. Só a ver. Só a sentir esta largueza azul do mundo, esta liberdade dos pássaros donos das alturas. E a desvendar o segredo das nuvens que estão sempre a mudar de forma e a desafiar-me: Pareço-me com quem, ãh? ou com quê? vê lá se descobres…
Palermas. E reprovo-lhes a falta de consistência. São e deixam de ser. Para quem o espetáculo? Para os pássaros que vos são tão próximos?
Que tontas, as nuvens. Como se não soubéssemos que elas invejam a felicidade dos pássaros.
Houve, porém, um dia em que mesmo sem palavras, me apeteceu entrar em diálogo com elas. Para minha surpresa fiquei a saber que se sentiam ofendidas por lhes chamar palermas e tontas em vez de brincalhonas e viajadeiras…
_ Talvez devesses era invejar-nos a sorte. Quem te dera a ti ser nuvem!, diziam elas a rir-se e a dar cambalhotas no céu azul deste agosto azul.
Quando quis saber porquê, pois que nunca me passara pela cabeça trocar o meu estatuto de pessoa pelo de nuvem, sabem o que me disseram?
_ O teu destino, minha cara, é permaneceres prisioneira nessa tua ilha fechada que os dois, mar e céu, mantêm cercada. A nós, ah a nós, nada nos limita. Quando nos apetece viajamos por esse mundo fora. Deve ser triste, acrescentam elas, deve ser triste não poder furar esse cerco.
Foi quando, apesar da dita languidez deste fim de verão, voltei a dar pela existência dessa tal linha fechada. Pois, lá estava ela bem real, lá ao longe, bem lá ao fundo (tão presente ainda a lembrança daqueles dias invernosos em que as asas da tristeza sobrevoavam a ilha, e eu me sentia tão apertada por aquele círculo de mar e de distância). Ah, poder pairar nos longes proibidos da ilha!
Ilhéu sofre, apesar da languidez de certos fins de verão.
Mas estava escrito que esta languidez de agosto iria trazer-nos ainda mais surpresas.
Veio um dia em que, inesperadamente, nos visitou aqui no céu dos Açores uma lua diferente daquela a que estávamos habituados. Brilhante e de uma proximidade perturbante, derramava sobre tudo e todos a magia de um poder a que não se podia fugir. Só mesmo fechando os olhos para lhe resistir, mas o ideal seria ausentar-se uma pessoa em casa fechada, só assim se conseguindo evitar o contágio perigoso que emanava da luz que os raios da lua projetavam cá em baixo.
E houve quem o fizesse, mas a maioria ficou. Resistir para quê? Era como reviver noutro corpo outra vida! E foi por isso que se formou uma poderosa rede de vozes vindas das mais diferentes zonas do planeta. Vozes a falarem desta lua encantatória num espalhafato nunca antes visto.
Seria porque se contavam os cinquenta anos da chegada do primeiro homem à lua? Seria??
Tamanha agitação dos humanos era impressionante. Uns citavam coisas antigas de exaltação à lua. Outros improvisavam-nas num fervor crescente. E que verve, senhores! Não mais poderão passar despercebidos os génios poéticos que então se revelaram! Ouvia-se dizer que a lua era dos namorados, para quase logo se ou vir: “a lua é um planeta/ que faz gazeta/ e não sabe namorar//a lua não é minha nem é tua/ não é nossa/a lua é de quem a agarrar”. Também havia quem pedisse à lua: “leva-me ó lua contigo/ preso num raio dos teus”. E estes bisavam muitas vezes o pedido.
Os mais agitados proclamavam em alta voz que a lua “se desnudava” quando lhe apetecia, e logo outros a comparavam à mulher: “tão linda que só espalha sofrimento/tão cheia de pudor que vive nua”.
Contraditório, não?
Houve quem se lembrasse também das noites “claras de tanto luar/que faz espelho de prata/as águas lisas do mar”.
E quantas de nós, mulheres, de assumido parentesco com a lua, nos ouvimos a dizer: “Tenho fases como a lua/fases de andar escondida/fases de vir prá rua/ Perdição da minha vida!/Perdição da minha vida!/Tenho fases de ser tua/tenho outras de ser sozinha”.
Tão bela, tão sedutora, tão digna de ser amada e idolatrada esta lua! Só mesmo ela para dissipar tristezas de de ilhéus perdidos nos confins do atlântico!
Claro que não me vim fechar em casa. Tampouco fechei os olhos a “este mágico luar de agosto”. Mas improvisar não é comigo. Sou mais dada a ouvir e a sentir. A deixar-me envolver por esta languidez de fim de verão.
Maria Luísa Soares