Na obra de 1978 A Doença Como Metáfora, Susan Sontag reflete sobre o impacto da metáfora na compreensão e vivência da doença, defendendo que a linguagem de inspiração bélica usada para descrever o cancro molda a representação coletiva da doença, hiper-responsabilizando e culpabilizando a pessoa doente. E que isto, a par da utilização da palavra cancro para descrever o que é malévolo, corrompe ou consome lenta e ocultamente, contribui para a mistificação da doença, promovendo temores obsoletos e reafirmando a visão moralista da doença como castigo, que induz vergonha, silenciamento e isolamento.
A solução passaria pela adoção de uma linguagem concreta, desprovida de metáforas. Concordo que a comunicação sobre doença, no contexto da literacia em saúde e no contexto clínico, pode ser prejudicada pelo recurso a metáforas que acarretam uma carga interpretativa danosa. Apesar disso, acredito que a metáfora pode ser muito relevante na construção individual da narrativa de doença. Ela pode tornar familiar algo desconhecido, permite clarificar, gerar novos significados, sendo um recurso valioso na aproximação da linguagem à vivência subjetiva interna, minimizando o nosso isolamento existencial inevitável.
Tenho refletido sobre tudo isto desde que visitei a exposição Céu Vermelho, de Marina Thomé, inaugurada a 28 de setembro, no Arquipélago. Numa instalação multissensorial, somos convocados a percorrer vários momentos e a experimentar, com o distanciamento que a arte permite, a vivência de um acontecimento grave, potencialmente traumático. Mesmo que não tivéssemos lido a descrição, cedo perceberíamos a metáfora, esclarecida pela sua própria voz: “o diagnóstico faz explodir uma coisa dentro de você que é vulcânica”. Eu, que nunca vivi a experiência de cancro de mama, achei esta metáfora bonita e certeira. Não só pela proximidade e possibilidade estética, mas por várias questões conceptuais que permitem estabelecer paralelismos. Por muito que a medicina tenha evoluído, continua a existir na nossa imaginação comum a ideia de que o cancro é sinónimo de morte. E por isso, o momento do diagnóstico pode configurar uma irrupção existencial: o confronto súbito e frontal com a nossa própria finitude, o abalo do nosso sistema de crenças fundacional. Também a erupção se inscreve na identidade de um determinado território, ameaçando a sua existência. No entanto, qualquer um dos acontecimentos congrega em si tanto a destruição como a possibilidade de reconstrução. O confronto com a morte é também possibilidade de ressignificação da vida.
Tentar apreender as metamorfoses dos 13 meses de atividade do Vulcão dos Capelinhos, o escolhido pela artista, é tarefa difícil. A narrativa é complexa e inclui tremores, vapores, silêncios premonitórios, explosões, nuvens de cinza, defluências, submersões, abatimentos. Aprendi há muitos anos que as erupções podem ser tipificadas, mas cada uma será única e irrepetível. Aprendi há menos tempo que assim é também a resposta humana ao trauma.
E por isso, as pessoas não têm de se rever na narrativa de Marina para poderem elaborar as suas próprias experiências dolorosas ou traumáticas. O poder da narrativa não é o do contágio por assimilação, mas o da criação do espaço onde ela possa ser pensada e erigida, em nome individual, assim a pessoa o queira.
Penso em Sontag, que lidava na altura com o mesmo diagnóstico, e atrevo-me a questionar a sua tese: não seria possível a libertação do jugo da metáfora coletiva pela criação de uma metáfora pessoal? Afinal é nosso, humano, o reino das palavras, como nos relembra o vulcão de Judite Canha Fernandes em Carta de um vulcão para o mundo.
Para ver: Céu Vermelho, de Marina Thomé, no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, até 3 de novembro de 2024
Mariana Bettencourt *
- Psiquiatra e Sexóloga clínica