2024 está a ser um ano de revelações. Quase a terminar, ainda há tempo para desafios de grande intensidade, mormente na política interna e externa, que ameaça rebentar o ponto e a linha onde se segura tenuemente. Para o efeito, uma das principais armas utilizadas está a ser a do enfraquecimento do chamado Quarto Poder.
O jornalismo é um dos pilares mais antigos da democracia, tal qual mente a conhecemos.
O seu papel é o de assegurar que nada poderá passar impune. Seja aos políticos, aos juízes ou a todos os grandes grupos económicos que almejam controlar a sociedade com o seu desregulado mercado liberal.
Uma jornalista não poderá baixar a cabeça e ignorar escândalos, incompetências e proposições de bastidores. Um jornalista não deve submeter-se à tirania do patronato, tantas vezes financiador de partidos e ideologias políticas. Aos jornalistas não se pode pedir para cumprirem ordens cegamente.
Quem escolhe o (per)curso de jornalismo segue, tendencialmente, uma vocação para a curiosidade e para a descoberta. São pessoas que têm o desejo de fazer o bem, informar e dar a conhecer mundo, mas também trabalhar para melhorar essas realidades e levantar espelhos a todas as forças que pautam por tentar controlar o pensamento e a massa crítica. O jornalismo é uma profissão de excelência, que se deseja destinada à sociedade e livre.
Luís Montenegro anunciou, no passado dia 8 de Outubro, uma estratégia para destruir o jornalismo como ele deve de ser. O processo já estava em curso há muito, como consequência dos grandes magnatas que foram adquirindo grupos como o da Global
Media. Não será demais recordar o tsunami de despedimentos coletivos que resultou dessa venda totalmente desregulada. Mas também é importante relembrar outras pessoas, comentadores de opinião, jornalistas de investigação e até mesmo chefes de redação que foram sendo sistematicamente saneadas e saneados em anos recentes, por não compactuarem com os poderes vigentes.
O que o PSD veio agora anunciar foi apenas o culminar do que já era esperado. Um primeiro-ministro em pleno exercício de funções, mesmo que parte de um governo minoritário, falou aos jornalistas para pedir que fossem meiguinhos, que não fizessem pesquisa, que se coibissem de desmentir, e que se rebaixassem à lei do silêncio e à lei do mais fraco. Isso tudo, enquanto anunciava investimento público no setor privado da comunicação social, e ameaçava as redes sociais, com frases que podiam ter sido escritas pelos argumentistas de Trump. Num ímpeto de total inconsequência, chegou mesmo a criticar os auriculares utilizados pelos profissionais, como se de lá viessem perguntas inoportunas. Como se o jornalismo não deva existir precisamente para fazer questões inesperadas, levantar cartolas e ameaçar os que desejam esconder falcatruas!
Tudo isto, contado há dez anos, ninguém acreditaria.
Talvez não seja bem verdade. Há pouco mais de dez anos, o governo de Pedro Passos Coelho, um dos mentores de Montenegro, caminhava no sentido de privatizar a RTP. No mesmo dia em que o atual primeiro-ministro pediu aos jornalistas para falarem baixinho e só intervirem quando for para elogiar o trabalho de quem está em funções, foi também anunciada uma machadada que pode bem ser a última no serviço público televisivo. Vai ser progressivamente extinta a publicidade naqueles canais, dando lugar a um rombo de milhões de euros, que resultará em despedimentos coletivos, fome e injustiça.
Fragilizada a RTP, depois vai ser mais fácil falar mal dela, e exigir a sua privatização. É uma estratégia com provas dadas na EDP, nos CTT, na TAP e, por estes lados, na própria SATA. É mais um trabalho de destruição da verdadeira função pública, que reflete a estratégia de um PSD que de social-democrata só mantém mesmo o nome do partido, e que se vai agarrando e levantando com as bandeiras dos partidos da extrema- direita económica e antissocial.
A RTP é uma das instituições basilares da nossa democracia, porquanto é casa de jornalismo que sempre se desejou isento e bem feito, correndo contra o lucro dos privados e contra as tentativas de controlo dos poderes públicos. Um país sem RTP é um país feito de engravatados empresários que concretizam a ameaça de que ou aceitamos ser um saco de pancada, ou vamos para o saco. Por muito mal que Portugal vá navegando, a RTP e as suas ramificações foram sempre farol no meio da tempestade.
De acordo com Montenegro, as pessoas precisam é de naufragar. Quem tiver dinheiro, que ande de iate, ao sabor das notícias encomendadas a canais privatizados feitos à medida.
O Plano de Ação do Governo para a Lusa não é muito diferente do que se propõe para a RTP, no sentido em que está previsto uma redução significativa das receitas para a Lusa por via de descontos para os jornais. Atentemos que de acordo com o plano, os descontos para serviços de interesse público são entre os 50% e 75% para os media regionais e locais e entre 30% e 50% para nacionais. No entanto, da parte desta agência noticiosa são disponibilizados três serviços gratuitos referentes a temas de identidade de género, desinformação e cultura. Um corte cego e sem compensações só pode levar a um fim…
Por cá, Boleiro comunicou o avançar da subvenção extraordinária para a comunicação social, discutida e refletida desde o seu anterior executivo, recorrendo à argumentação do dever público de ajudar quem mais precisa, mas, segundo o que parece, mantendo o Acordo Coletivo de Trabalho fora da equação.
Talvez fosse importante recordar ao presidente do Governo Regional que essa mesma subvenção deveria ser extensível a áreas sociais e culturais que levaram cortes e perseguições recentes, da parte da coligação e dos seus parceiros extremistas.
O jornalismo isento estará em vias de extinção. Sem ele, passarão cada vez mais jogadas de bastidores ao sabor do vento e do desconhecimento da sociedade civil, enquanto damos passos de gigante em direção a uma governação de total impunidade. É caso grave que só nos pode levar a perguntar: até quando?
Alexandra Manes